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Valdeci Rezende

PENSAMENTO E EDUCAÇÃO HISTÓRICOS EM CRIANÇA BRASILEIRA
Prof. Dr. Valdeci Rezende Borges
Universidade Federal de Goiás/ Regional Catalão

Objetiva-se abordar o pensamento e a educação históricos em Criança brasileira: segundo livro de leitura, de Theobaldo Miranda Santos, usado no ensino primário nos decênios de 1940 e 1950, atendo ao conhecimento histórico veiculado na Unidade IX, “As datas cívicas”, composta pelos capítulo: “Tiradentes”, “Descobrimento do Brasil”, “Libertação dos escravos”, “O grito do Ipiranga”, “Proclamação da República” e “Dia da Bandeira”. Por meio desses fatos e personagens as crianças recebiam orientações temporais e outras fundamentais para seu existir em sociedade, integrando um quadro de referências e constituindo dada consciência histórica (RÜSEN, 2010, p.56).
Santos publicou mais de 150 livros didáticos, como os de leitura, em coleções da Companhia Editora Nacional e da Agir Editora, em conformidade a um projeto de educação que visava intervir na sociedade. Pensando que a narrativa histórica constrói leituras do mundo e que a prática da leitura conecta o mundo do leitor com o do texto, podendo modificá-lo, busca-se os sentidos atribuídos às experiências históricas que orientavam o leitor em formação numa interpretação moralizante e patriótica da história, circunscrita pelos “heróis nacionais”, grandes nomes, datas e eventos, constituintes de um cronograma anual de comemorações e festividades, sobretudo, no espaço da escola, e que sempre se repetem no calendário.
“Tiradentes” foi a primeira personagem abordada por meio de uma narrativa que aponta a existência de diferentes tempos na história da sociedade brasileira numa delimitação temporal indeterminada, “há mais de cem anos” ou “naquele tempo” em que “o Brasil pertencia a Portugal”, no qual Tiradentes fora o “chefe” de “um grupo de brasileiros patriotas” que queria “libertar o Brasil” prendendo o governador português no dia que tinham de mandar ouro para Portugal, que sujeitava e explorava nossas riquezas. A intenção era fazer “do Brasil uma nação livre, governada por um brasileiro”, porém, um português “contou tudo ao governador”, que mandou prender Tiradentes e seus companheiros, e, este, “para salvar os amigos da morte”, pôs-se como “o único culpado”, sendo enforcado em 21 de abril de 1792, sem ter “nenhum medo” e “morreu como um verdadeiro herói!” (SANTOS, 1951, p. 117-8). Meio a marcas temporais ora vagas, se valoriza a ação do indivíduo voltada para a liberdade de seu povo contra a dominação de outros, que visa o bem da nação e possui postura patriótica, valente, destemida, fiel e heroica.

Em “Descobrimento do Brasil”, se conta que “o Brasil pertenceu a Portugal porque foi descoberto pelos portugueses”, em 22 de abril de 1500, e que “Há muitos anos, D. Manuel, rei de Portugal, mandou uns navios à Índia, sob o comando de Pedro Álvares Cabral”, e que “no meio da viagem, os navios se afastaram muito do caminho que deviam seguir e encontraram uma terra desconhecida”, que “era o Brasil”, na qual havia “muitos índios e árvores cor de brasa, chamadas ‘pau-brasil’”, que deram nome ao lugar. Com marcação temporal ora também indeterminada, “Há muitos anos”, ora mais objetiva, remete-se à ideia do fato ser fruto do acaso, findando a lição meio às ideias de festejo, comemoração e celebração (SANTOS, 1951, p. 119-20).

Em “Libertação dos escravos”, indica-se a mudança no tempo e na sociedade brasileira ante a surpresa de um aluno de que no Brasil existiu escravidão. A professora esclarece que “no dia 13 de maio se comemorava a libertação dos escravos” e que “antigamente, o trabalho nas fazendas era feito por escravos”, que eram “negros trazidos da África e vendidos aqui, como se fossem animais”, sendo “muito castigados” e tendo filhos também escravizados e vivendo separados dos pais. Experiência descrita como distante do tempo presente, e duradoura, mas finda porque “diversos brasileiros lutaram para que ela desaparecesse do nosso país” e “finalmente, conseguiram o que desejavam”, em 13 de maio de 1888, quando “a princesa Isabel assinou a lei de libertação”, pois seu pai, Dom Pedro II, não estava no Brasil. Conta-se, ainda, que, “antes, já tinham sido libertados os velhos e filhos de escravos.” Portanto, era data de comemoração e regozijo: “Felizmente, no Brasil não há mais escravidão. O dia 13 de maio é, por esse motivo, uma das datas mais bonitas da nossa história.” (SANTOS, 1951, p. 121-2). Aqui também, por um lado, se oferece marcos temporais precisos, e, por outro, indeterminados - “antigamente” e “durou muito”-, bem como se menciona, mas sem maior precisão, quem foram os muitos brasileiros que lutaram para seu fim, nem indica suas armas e ações, cabendo o papel de heroína libertadora à princesa e sua voluntariedade.

Outro vulto elevado a monumento da pátria foi de D. Pedro I, em “O grito do Ipiranga”, por meio da voz do pai de um aluno que conta a história, prescindindo aquela do saber instituído por excelência. Conta que “houve um rei de Portugal, chamado Dom João, que fugira para o Brasil quando o imperador da França invadiu a terra dos portugueses”, e que, quando este regressou para a Europa, “deixou seu filho, o príncipe Dom Pedro, no governo do Brasil”, o qual “era muito amigo dos brasileiros”. Portanto, quando o rei ordenou que o príncipe voltasse a Portugal, e “os brasileiros pediram [...] que não fosse”, “ele ficou”, até que, em 7 de setembro de 1822, recebeu nova “ordem para embarcar e outras exigências que ofendiam os brasileiros”. Estando em viagem a São Paulo, e perto do riacho Ipiranga, “ficou muito zangado e gritou: _ Independência ou morte!”, e “Assim ficou o Brasil livre. E o povo brasileiro fez de Dom Pedro o seu primeiro imperador.” (SANTOS, 1951, p. 123-4). A invasão ao território alheio não foi vista como negativa e se, por um lado, o príncipe desobedeceu ao pai, o rei, foi por atender os anseios dos brasileiros, de quem era amigo, por quem ficara e dispunha a morrer para defendê-los de ofensas e garantir a autonomia. A perda da tutela do rei ao príncipe e a ruptura com a dominação de outra nação, o poder português, garantiu a independência e compensa a atitude condenável de desobedecer ao pai/rei.   

Após as histórias contadas pelo pai nas lições domésticas, na escola o pequeno aprendiz pediu explicação do conhecimento competente do por que não haver mais imperadores no Brasil? Ouviu que “os brasileiros não estavam satisfeitos com o Império”, “preferiam a República, que é o governo do povo pelo povo” e que, em “15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca pediu ao imperador Dom Pedro II que deixasse o governo porque o povo, o exército e a marinha não queriam mais que ele continuasse a dirigir o Brasil.” Ante o pedido e ao grito de “Viva a República!”, perdeu o governo e embarcou para Europa com a família, findando com o tempo dos imperadores no Brasil (SANTOS, 1951, p. 125-6). A vontade do povo deve ser soberana e satisfeita pelos governantes em regimes diferentes, e aquele republicano, do povo pelo povo, preferido ao imperial, que vigorava antes, findara de forma pacífica, causando satisfação e contentamento.

Em o “Dia da Bandeira”, conta-se que as meninas da escola estavam “fazendo uma bandeira brasileira”, pois “a bandeira da nossa Pátria não deve ser comprada na loja”, mercadoria e comercializada, e aquela estava ficando “linda!”, com o verde e amarelo, a esfera azul, a faixa de “Ordem e Progresso”, as estrelas, como do Cruzeiro do Sul, representando os Estados e o Distrito Federal. Após relacionar suas cores a alguns aspectos de nossa terra, o verde às matas, o amarelo às riquezas, o azul ao céu estrelado, fica-se a lição: “Devemos amar e respeitar nossa bandeira [...] Eu amo minha bandeira;/ Por ela daria a vida,/ Pois é a imagem sagrada/ Da minha Pátria querida!” (SANTOS, 1951, p. 127-8). Assim se celebra os símbolos da pátria buscando a todos envolver em sua feitura e culto, que além de cívico e patriótico, tem significado sagrado e ainda mundano, de ordem e de progresso, de amor pelo do qual se deve dar a vida.

Por entre datas, comemorações, festejos, grandes nomes, heróis e sentimentos patrióticos, típicos de uma concepção de história de eventos, factual e da nação, metódica, vê-se desfilar alguns momentos eleitos como marcos importantes de nossa história, que deveriam ser glorificados, enaltecidos e cultuados, por contribuírem na constituição da nação, livre e democrática. Sentimento nacional, defesa da pátria, progresso da nação, são aspectos exaltados visando instruir as novas gerações em amar a Pátria, a nação, o Brasil, a República, consolidando o regime. Com linguagem simples e aspecto de galeria de quadros, as narrativas serviam a um projeto político, partindo de tempos distantes, do descobrimento e da dominação portugueses à formação da nação e povo livres, pela ação de heróis “verdadeiros” e virtuosos numa sucessão de grandes fatos atrelados à libertação e ao estabelecer de seus símbolos. Faz-se apologia ao regime republicano, exalta-se a Pátria livre, ordeira e progressista, por meio de um pensamento histórico, interpretação do passado e produtor de dada consciência histórica. Datas cívicas e momentos de comemoração que alimentam a recordação de tais eventos e figuras, transmitindo uma visão da história, um conhecimento e forma de pensar as experiências sociais no tempo, linear e evolutivo, produzindo dada consciência histórica (RÜSEN, 2010).   

Referências
RÜSEN, Jörn. Razão histórica: teoria da história: os fundamentos da ciência histórica.Brasília: Ed. UnB, 2010.
SANTOS, Theobaldo Miranda. Criança brasileira: segundo livro de leitura. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora, 1951.


2 comentários:

  1. Joséti Viana Alves5 de abril de 2017 às 10:35

    Olá, gostaria de saber como trabalhar esses temas na sala de aula mesmo que o livro didático (principal meio de estudo para muitos alunos) é em um estilo positivista?

    Grata, Joséti Viana Alves.

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  2. Olá Joséti Viana Alves

    acredito que o caminho seja buscar levantar ou oferecer ao discente outras perspectivas de leitura e entendimento sobre esses mesmos temas, de modo a desconstruir a visão oferecida pelo livro didático. Pensar junto aos discentes que todo texto é resultado de uma dada visão de mundo, sendo uma leitura dos fatos e não os fatos em si; que todo documento constitui-se em representação de um real, não sendo o real em si; que possui intencionalidades subjacentes, nem sempre explícitas e que mantém uma relação com realidade a qual refere, mas não uma relação transparente, límpida; que de todo tipo de texto emana um real que não é a realidade em si, mas uma realidade visada pelo autor do texto. Assim, o próprio livro didático não traz a realidade em si, mas uma representação dela, que é marcada por motivações diversas, por interesses variados decorrentes do lugar que o autor ocupa na sociedade, sendo fruto de um lugar de onde se fala, de onde se vê. Acredito que essa reflexão sobre os documentos históricos de forma geral é o primeiro momento para em seguida passar a ir descontruindo a leitura que o livro didático oferece. Grato pela questão e espero ter contribuído ao menos um pouquinho para que você possar ir se instrumentalizando em sua prática docente. Valdeci

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