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Talita Medeiros

VOZES OCULTAS: RELAÇÕES DE GÊNERO E MEMÓRIA NA CONSTITUIÇÃO DE ARQUIVOS PESSOAIS
Talita Gonçalves Medeiros
Doutoranda em História da UFSC

Relações entre memória e gênero: arquivos e seus condicionamentos sociais
No teatro da memória, as mulheres são sombras tênues, a frase que inicia o texto de Michele Perrot (1989), nos revela a faceta de exclusão, restrição e domesticação de uma memória. Restrita ao lar, as mulheres e sua memória voltavam-se ao ambiente privado e suas ações nele: redigir cartas aos familiares em busca de informações sobre saúde, nascimento e morte; escritas de diários como forma de deixar rastros ou vestígios de vivências e experiências que encontram eloqüência em suas memórias trajadas;cadernos ou blocos de anotações com receitas passadas de geração em geração; cartões endereçados e recebidos de parentes e amigas/os devido a festividade de aniversários ou casamento; constituição de álbuns familiares; coleção e manutenção dos mil nadas,  possuem “uma certa relação consigo mesma, com sua própria vida, com sua própria memória [...]” (PERROT, 2013, p. 30),
Da mesma forma, se no teatro da memória, as mulheres são uma leve sombra na disposição de arquivos públicos também. Esse silenciamento da voz feminina na elaboração e na disposição de arquivos públicos ocorre por dois motivos principais segundo Michelle Perrot (2013): em primeiro lugar o fato de que seu habitat se revelava cotidianamente como espaço íntimo, doméstico e familiar. Suas práticas e memórias eram, em sua maioria, voltadas para seu lar, filhos/as e familiares. Os arquivos pessoais assim se constituíam porque,
a presença de mulheres nesses arquivos se dá em função que fazem da escrita: é uma escrita privada, e mesmo íntima, ligada a família, praticada à noite, no silêncio do quarto, para responder às cartas recebidas, manter um diário e, mais excepcionalmente contar sua vida. Correspondência, diário íntimo, autobiografia não são gêneros especificamente femininos, mas se tornam mais adequados às mulheres justamente por seu caráter privado [...]. (PERROT, 2013, p. 28).
Em segundo lugar, a falta de espaço em arquivos públicos. A escrita masculina é redigida quando voltada para a resolução de negócios, de produção profissional, posições de poder, burocrática e/ou ligação com o público. Portanto, sua presença na esfera pública se encontrava em consonância com seu arquivamento em espaço público.
Além disso, o conhecido processo de autodestruição das memórias femininas auxilia na pouca visibilidade e constituição de arquivos no âmbito público,
esse ato de autodestruição é também uma forma de adesão ao silêncio que a sociedade impõe às mulheres[...] um sentimento de negação de si que está no centro da educação feminina, religiosa, laica, e que a escrita-assim como a leitura contradizem. Queimar seus papéis é uma purificação pelo fogo desta atenção a si mesma que confina ao sacrilégio (PERROT, 2005, p. 37).
Essa ação atua diretamente nas fontes de pesquisas e estudos, privilegiadas por historiadoras e historiadores. Relacionadas com o tempo e com a memória, os arquivos pessoais, passam pelo crivo da escolha e, portanto, da seleção do que se deseja perpetuar sobre sua memória. Estas escolhas, claramente não neutras, também transpassam pelo viés do gênero e assim buscam esculpir relações e valores mediados por aquilo que a eternidade deve registrar. Desta forma, as memórias escolhidas para o futuro transcorrem em ações de subjetividade, poder e identificação.

As memórias de mulheres: a importância do ensino de História a partir das fontes
A virada lingüística, a partir dos anos 1960, procurou justamente problematizar essas escolhas e esses silenciamentos. Investindo nas análises dos “novossujeitos do novo passado” (SARLO, 2007, p. 16) essa metodologia de análise que passou a considerar as subjetividades das/nas ações humanas, voltou seus olhos para a valorização dos detalhes, “as originalidades, a exceção à regra, as curiosidades que já não se encontram no presente”, (SARLO, 2007, p. 17) ou seja, privilegiar as sujeitas marginais que  estavam fora do cenário de estudo, mas não fora do cenário de “discursividades de memória” (SARLO, 2007, p. 17) .
Fala-se muito sobre mulheres, escreve-se muito sobre estas, mas, na maioria dos casos, a partir de uma voz e de uma escrita masculina. Representações, idealizações e perfomatizações que por muitas vezes não apenas alcançam a produção do discurso sobre as mulheres e os seus silenciamentos na “produção e na condição culturais e políticas” (SARLO, 2007, p. 21) mas que tornam o discurso masculino inteligível, próprio e único no coletivo.
Deste modo, a importância de estudos nas fontes de arquivos pessoais de mulheres se faz necessário, da mesma forma que a descontinuação de discursos sobre as mulheres feitas por pessoas que naturalizam e generalizam aquilo que deve ser tratado como complexidades. As fontes de arquivos pessoais, assim como as demais, encontram seus pontos de saturação, críticas e contrapontos. O presente texto não busca uma defesa ingênua a respeito dessas fontes, mas busca refletir sobre a importância de suas análises e contrapontos sobre uma História sempre escrita no singular e no masculino.
Deste modo, a oportunidade de contato com essas memórias, com essas linguagens e códigos sociais e com essas diversas visões de mundo, ainda que retratadas através de uma escrita cotidiana, se destacam e se fortalecem na possibilidade de refletir sobre as diversas narrativas que “nos oferecem um tempo múltiplo, que se superposicionam, diferenciando-se dos marcos gerais da história oficial, com novos marcos plenos de significados, capazes de reconstruir uma outra história [...]”(STADNIKI, 2005, p. 345). Desta forma, a escrita tida como “ordinária”, é uma importante e destacável forma de elucidar um passado e um presente, visto que “há outras cronologias, para além das oficiais, edificadas em decorrência da significação de eventos e compartilhadas pelos grupos de vivência” (STADNIKI, 2005, p. 345).
Portanto, a busca e o incentivo de análises, estudos e pesquisas em arquivos pessoais de mulheres possui como base a intenção de demonstrar que as experiências particulares -quando em contraste com a teia social de atrizes e atores nesse jogo complexo da dinâmica do tecido social - podem ser reelaboradas, dinamizadas e questionadas. Ou seja, cabe a nós pesquisadores e pesquisadoras, ouvir essas vozes ou perceber o que está retratado de suas memórias, seu esquecimento e seu silencio, estar sensível para perceber no silenciamento o que elas desejam falar.
Deste modo, destacamos a importância de outras análises, interseções e elaborações históricas. Para isto, os arquivos pessoais das mulheres são importantes e permite que outras vozes sejam ouvidas. Pesquisar em arquivos pessoais de mulheres relacionando e compreendendo as relações de gênero perpassadas pela História nos instiga a questionar a História nacional e a escrita de/a partir de sujeito universal.

Considerações finais
Como nos afirma Jelin (2002, p.56), “siempre habrá otras histórias, otras memórias e interpretaciones alternativas, em la resistência, em el mundo privado, em las ‘catacumbas’”, deste modo, valorizar arquivos pessoais de mulheres como fontes de pesquisas é possibilitar o conhecimento de um universo singular que se cruza no plano da experiência.  Testemunhar por outros olhares é observar que “não há testemunho sem experiência, mas tampouco há experiência sem narração: a linguagem liberta o aspecto mudo da experiência, resume-se a de seu imediatismo ou de seu esquecimento e a transforma no comunicável” (SARLO, 2007, p. 24).
Desta forma, à guisa de conclusão, entendemos que  História, gênero e arquivos pessoais se entrelaçam na busca por práticas sociais que pretendem evidenciar como as relações sociais são produzidas de forma desigual e distinta na elaboração de arquivos pessoais. Ou seja, compreender que a História, “é uma narrativa sobre o sexo masculino e constitui o gênero ao definir que somente, ou principalmente, os homens fazem história” (PEDRO, 2011, p. 273), nos cabe inquirir e reafirmar a necessidade de compreender como o gênero age na elaboração e constituição desses arquivos. Isto é reafirmamos a necessidade de um olhar mais atento para as fontes de arquivos pessoais das mulheres e a sua importância para a elaboração de um social mais dinâmico, fluido e coerente na exploração das Histórias ao invés de uma oficial e abrangente. 

Referências
JELIN, Elisabeth. Los trabajos de la memoria. Buenos Aires: Siglo XXI Editora Iberoamericana; Nueva York: Social ScienceResearchCouncil, 2002.  pp. 1- 78.
PEDRO, Joana. Relações de Gênero como categoria transversal na historiografia contemporânea. Topoi, v. 12, n.22, jan-jun. 2011, p. 270 -283.
PERROT, Michele. Práticas da memória feminina. In: As mulheres ou os silêncios da história. Bauru, SP: EDUSC, 2005, p. 33-43.
PERROT, Michele, Minha História das Mulheres. – 2º Ed., 1ª .reimpressão – São Paulo: Contexto, 2013.
PERROT, Michele, Introdução. In: História da vida privada: Da revolução Francesa a Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das letras, 1993, p. 1-13.
SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.
STADNIKY, Hilda Pivaro. Sob a égide da intimidade: a textualização do tempo vivido. In: PERARO, Maria Adenir e BORGES, Fernando Tadeu de Miranda (Orgs.). Mulheres e famílias no Brasil. Cuiabá, MT: Carlini&Caniato, 2005. p. 339-364.


11 comentários:

  1. De acordo com minha leitura, percebi que as mulheres foram citadas de uma maneira bastante genérica. Tendo em vista que essas mulheres eram excluídas das atividades políticas e vítimas de uma sociedade patriarcal, como elas de fato poderiam atuar? Gostaria de saber se você usou mulheres específicas para compor seu trabalho e se elas realmente contribuíram para a história com suas escritas de diários ou atividades mais incisivas. Elas fizeram textos em sua maioria como forma de expressão de sentimentos pessoais ou como forma de protesto?
    Alexandre Antonio Cavalcante de Souza

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  2. Olá Alexandre. Esse texto é um recorte de minha pesquisa do doutorado que possui como iniciativa trabalhar com cartas enviadas da Baronesa Amélia para sua filha Amélia nos anos de 1885 a 1917 na cidade de Pelotas/RS. Como não conseguiria especificar o termo mulheres com mais propriedade no texto, devido a sua configuração, acabei infelizmente trabalhando de uma forma mais abrangente o termo mulheres.Quanto a sua primeira pergunta, acredito que elas podem auxiliar não queimando suas cartas, diários, cadernos de anotações e também nos disponibilizando esses materiais como fonte, uma vez que elas acreditam que isso não possui validade histórica.Quanto a sua segunda questão, como mencionei estou utilizando em minha tese as cartas da Baronesa Amélia enviadas para sua filha Amélia e nesta fonte observo principalmente as prescrições de feminilidades: como ser mãe, esposa e dona do lar, e portanto, nestas cartas como com o passar do século as relações mudam eu consigo perceber mudanças de atitudes de ambas, e além disso trechos de mudanças da sociedade em geral de Pelotas, e com isso elas contribuem muito para que eu possa compreender como ser "mulher" muda ao longo dos anos e como a virada do século ajuda muito nessa perspectiva.Quanto a sua terceira questão, é mais expressão de sentimentos mesmo, nada de protesto ou "rebeldia".

    Espero ter respondido tuas dúvidas e obrigada pela reflexão.

    Abraço
    Talita

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    1. Olá Talita, desculpe a demora em lhe responder, estava empolgado com os demais artigos.
      Gostei do texto, e você conseguiu sim tirar minhas dúvidas.
      Acredito que todo documento histórico, oficial ou não, consegue nos transmitir esses valores, além de nos proporcionarem um conhecimento bem verídico do tempo.

      Grato e Parabéns

      Alexandre Antonio Cavalcante de Souza

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  3. Parabéns Talita pelo belo trabalho! Que sugestão você daria para trabalhar o tema memória em uma sala de aula do 7 ano? Relacionando com a história local do bairro onde a escola esta inserida.

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    1. Olá Valeria, obrigada! Uma atividade que eu achei bem interessante e que deu resultados muito legais, foi uma atividade no sexto ano, onde os /as alunos/as deveriam entrevistar as pessoais mais velhas do bairro e procurar saber o porque do nome das ruas do bairro. Depois dessa entrevista, elas deveriam pesquisar quem era essas pessoas e quais as influencias para o bairro. Posteriormente elas deveriam um grande cartas colocando as diversas versões dos nomes surgidas das ruas e quem eram essas pessoas. Acho que assim, tentamos desenvolver e instigar um pouco nos/as educandas como o profissional historiador/a trabalha, mostrando como funciona a pesquisa e que nas mais variadas temáticas há variadas versões e que portanto em História não existe o "certo" ou o "errado", mas cada olhar e identidade na forma de fazer História.


      Espero ter ajudado!

      Talita

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  4. Gostaria de entender em que recorte você enfatizou a sua pesquisa, acho que ela está bem generalizada e tudo mais. Na década de 1970, as mulheres começaram a ganhar voz, ainda que não o esperado, mas a liberdade sexual estava no auge e as mulheres estavam deixando de se reprimir. Você chegou a dar uma olhada no recorte da década de 1970? Alana Albuquerque de Castro

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    1. Olá Alana,sim compreendo sua angustia e concordo com você. Apesar de não ter referenciado no texto, quando estava escrevendo este artigo, ainda que concorde que as vozes femininas continuem ocultas em muitas fontes, eu estava pensando na minha pesquisa. Minha pesquisa encerra-se em compreender quais as prescrições de feminilidades que a Baronesa Amélia através das cartas enviadas para sua filha Amélia nos anos de 1885 a 1917 na cidade de Pelotas/RS se reportava. POis bem, por isso minha pesquisa esta voltada mais para o século XIX e XX e realmente deixou uma brecha para dúvidas, desculpa.

      Abraços.

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  5. Gostaria de entender em que recorte você enfatizou a sua pesquisa, acho que ela está bem generalizada e tudo mais. Na década de 1970, as mulheres começaram a ganhar voz, ainda que não o esperado, mas a liberdade sexual estava no auge e as mulheres estavam deixando de se reprimir. Você chegou a dar uma olhada no recorte da década de 1970? Alana Albuquerque de Castro

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  6. Olá Alana,sim compreendo sua angustia e concordo com você. Apesar de não ter referenciado no texto, quando estava escrevendo este artigo, ainda que concorde que as vozes femininas continuem ocultas em muitas fontes, eu estava pensando na minha pesquisa. Minha pesquisa encerra-se em compreender quais as prescrições de feminilidades que a Baronesa Amélia através das cartas enviadas para sua filha Amélia nos anos de 1885 a 1917 na cidade de Pelotas/RS se reportava. POis bem, por isso minha pesquisa esta voltada mais para o século XIX e XX e realmente deixou uma brecha para dúvidas, desculpa.

    Abraços.

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  7. Esse texto traz uma visão interessante sobre a possibilidade de uso de arquivos pessoais femininos como fontes. No entanto, não entendi o que você quiz dizer quando afirmou o seguinte: "... o conhecido processo de autodestruição das memórias femininas...".Como se dá esse processo? Aline Kelly F. Souza

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  8. Esse texto traz uma visão interessante sobre a possibilidade de uso de arquivos pessoais femininos como fontes. No entanto, não entendi o que você quis dizer quando afirmou o seguinte: "... o conhecido processo de autodestruição das memórias femininas...". Como se dá esse processo?

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