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Márcio Rodrigues

notas SOBRE o uso de histórias em quadrinhos no Ensino de História
Márcio dos Santos Rodrigues
Doutorando em História UFPA

Neste texto busca-se estabelecer balizas para a utilização das Histórias em Quadrinhos no Ensino de História. Deste modo, esperamos contribuir para a construção de instrumentais de modo que historiadores licenciados transitem pelo mundo histórico configurado pelos quadrinhos (também denominados HQs). O que considerando como HQs é o gênero de mídia baseado numa sequência narrativa visual, no qual imagens se juntam no interior de quadros, interagindo simultânea e indissociavelmente (McCLOUD, 1995; GROENSTEEN, 1999). A proposta aqui delineada é a de tratar as HQs não apenas como ferramenta que o professor de História teria para tornar suas aulas “mais atrativas”, mas apresentar pressupostos teórico-metodológicos que possibilitem o uso desse objeto cultural em práticas docentes. Dito de outra forma, não se deve usar os quadrinhos como pretexto para facilitar o interesse dos alunos pelo estudo da História, mas salientar que várias questões que interessam aos educandos fazem parte de determinados processos. O caráter deste texto, assim, é um tanto prescritivo.
Um dos pontos defendidos é que o educador deve interpretar as HQs como objeto do conhecimento e um ponto de partida para discussões mais aprofundadas acerca de temas históricos. Usar os quadrinhos tão- somente como suporte de informações é limitar bastante seu potencial como prática cultural, construtora de significados, e sua capacidade de interferir no mundo social. Assinalamos que não é nossa intenção apresentar de maneira unívoca como os quadrinhos devem ser empregados em sala de aula. Há inúmeras possibilidades de abordagem das HQs como fonte documental. Tais possibilidades variam conforme a temática a ser trabalhada em sala de aula e com o método pedagógico a ser utilizado e/ou ainda conforme os diferentes níveis de familiaridade e compreensão da linguagem das HQs por parte dos professores e educandos. É importante, como nos indica um dos pioneiros da pesquisa de quadrinhos no Brasil Waldomiro Vergueiro, que o professor lance mão de uma abordagem mais ousada, apresentando e contextualizando as mais diferentes tradições e gêneros de HQs, a fim de que se obtenha resultados mais significativos em torno do seu emprego em sala de aula (VERGUEIRO, 2004).
Até pouco tempo não havia debates correntes sobre o uso dos quadrinhos nas aulas de História. Todavia, no contexto atual teses e dissertações têm sido defendidas. Alguns estudos apresentados em livros têm buscado entender como os quadrinhos podem ser mecanismos importantes da construção da História, como, por exemplo, os trabalhos de Marco Túlio Vilela no campo do Ensino de História, por meio de representações, e as investigações de Fronza sobre as possibilidades investigativas da aprendizagem histórica de jovens a partir dos quadrinhos. Grande parte dos trabalhos no campo do ensinar e aprender História, contudo, cai no equívoco de, em nome de uma base conceitual já definida, usar os quadrinhos apenas como suporte de informação. Ao invés de partir de um exame contextual das fontes, confrontando-as com ferramentas conceituais, ignoram que representações construídas nos e pelos quadrinhos dizem mais do contexto em que foram produzidas do que propriamente de uma temporalidade passada.
Quadrinhos podem nos apresentar aspectos de uma realidade passada, mas passam longe de nos fornecer uma tradução literal dos acontecimentos que tiveram lugar em uma temporalidade passada. Longe de serem retrovisores, os quadrinhos ao lidar com a história acabam também por reconstruir o passado que não pode ser acessado tal como ele foi ou transcorreu, mesmo porque uma realidade passada é múltipla e, portanto, inapreensível na íntegra. Um reflexo seria fiel, prova de uma realidade. É preciso considerar que quadrinhos interpretam e argumentam muito mais do que refletem. Tentam apresentar e divulgar uma certa interpretação da existência através de sua narrativa visual. Ou seja, não são reflexo, mas argumento. Nessa tentativa de monumentalizar os quadrinhos o professor pode recorrer ao conhecido texto “Documento-monumento”, do historiador francês Jacques Le Goff, para trabalhar nas intenções de autores.
A tarefa de lidar com os quadrinhos no âmbito do ensino de História recai também em compreendê-los como práticas culturais e/ou resultados de um terreno de disputa e negociação em torno de questões pertencentes a determinado contexto. Eles devem ser vistos como práticas, formas de se pronunciar, debater, questionar questões políticas, sociais, econômicas da época, do momento de sua produção. O professor pode instrumentalizar os quadrinhos relacionando-os com o conteúdo ensinado e, ao mesmo tempo, interpretá-los como um diálogo com o tempo em que foram concebidos. Assim, reforçamos também a necessidade do docente verificar em um primeiro momento os conteúdos prévios dos alunos acerca dos temas apresentados em determinados quadrinhos. Em seguida, o professor pode juntamente com os educandos construir entendimentos acerca de processos históricos apresentados por meio da ficção dos quadrinhos. Esse gênero de leitura está, em maior ou menor grau, presente em várias situações da vida de alunos das mais variadas faixas etárias, seja por meio do caráter intermidiático dos quadrinhos – traduzido através das adaptações cinematográficas, jogos, brinquedos, roupas e desenhos animados, etc. Portanto, a discussão torna-se oportuna, em virtude de uma suposta cumplicidade de alunos com as HQs.
Consideramos que por vezes alunos constroem uma relação íntima com o conhecimento histórico, com a memória e com a história, que eventualmente foge do âmbito de livros e revistas da área. Nessa construção, há a participação de meios/suportes da comunicação de massa e talvez o envolvimento comece pela televisão e pelos filmes. Quadrinhos também se enquadram nesses meios, dentro do conceito de cultura da mídia aos moldes de um autor como Douglas Kellner. Se atentarmos para a importância da cultura da mídia, que tem impactos os mais diversos na sociedade, é bem provável que os quadrinhos integrem seu campo de reflexão. Isso traz desdobramentos no ensino, não implicando que a dimensão da aprendizagem seja algo menor ou subordinada a da pesquisa. É um outro processo.
Quadrinhos podem ser consultados em espaços diferenciados e particularmente estranhos àqueles que licenciados ou pesquisadores da História estão habitualmente acostumados. Está interessado em utilizar histórias em quadrinhos como fonte histórica e não sabe muito bem onde encontrá-las? Gibitecas podem ser espaços por onde você, professor, pode ter contato com elas. Além disso, há um repertório imenso de quadrinhos circulando pela rede mundial de computadores, sob diferentes formas. É preciso, além disso, de uma boa dose de “erudição”. Muitas das vezes, a chamada “cultura inútil” pode ser válida para a análise.
É importante considerar também que estudar os quadrinhos no campo da aprendizagem histórica tem um aspecto diferente daqueles das fontes textuais. Quadrinhos possuem uma forma de sistematização distinta de objetos da cultura escrita. Além disso, quadrinhos ainda são chamados equivocadamente de literatura. HQs têm uma linguagem própria que necessariamente não carece de textos. Aliás, eles são uma linguagem da cultura visual. A linguagem escrita passa longe de ser o elemento essencial, obrigatório, nos quadrinhos. Há quadrinhos em que os autores optam por não utilizar nenhuma palavra escrita (excetuando o título da obra, que serve tão somente para situar o leitor a respeito do título e acerca do autor da obra). Basta que imagens sejam articuladas em um espaço específico de uma página ou mesmo através da disposição em tiras para oferecerem ao leitor a impressão de que uma história é contada (McCloud, 1995). Elementos textuais quando presentes devem ser vistos como indissociados dos imagéticos. Não há motivos para considerá-los como superiores, mais complexos. É exigido uma percepção deles como um todo. Juntos compõem a ideia de um sistema de linguagem. Para estudar os quadrinhos como fonte é preciso conhecer seus aspectos formais. Todavia, isso não basta. HQs não devem ser reduzidas às determinadas características, mesmo porquê certas convenções do gênero estão em permanente mudança ao longo do tempo. Quadrinhos não são, quadrinhos estão sendo configurados
Quadrinhos, da mesma forma que as fontes textuais, estão sujeitos aos questionamentos da crítica histórica. Todavia, carecem de um enfoque diferenciado, que considere tanto aspectos formais quanto mediações históricas envolvidas nas produções de tal e qual título. Para usar os quadrinhos como fonte histórica devemos considerar primeiramente que esse gênero de leitura tem uma história, além de sua linguagem própria. É essencial ter além da capacidade de decodificar os quadrinhos, uma predisposição ao novo, se quisermos utilizá-los no contexto escolar.

Bibliografia
FRONZA, Marcelo. Ensinar e aprender História: histórias e quadrinhos e canções. Curitiba: Base Editorial, 2009
GROENSTEEN, Thierry. Système de la bande dessinée, Paris: puf, Formes sémiotiques, 1999.
KELLNER, Douglas. A cultura da mídia – estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno, Bauru, SP, EDUSC, 2001.
LE GOFF, Jacques. “Documento/monumento”. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 1 - Memória- História. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1984, p. 95-106.
McCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. M. Books, São Paulo. 1995.
RAMA, Angela; VERGUEIRO, Waldomiro (Org.). Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004.
VILELA, Marco Túlio Rodrigues. A utilização dos quadrinhos no ensino de História: avanços, desafios e limites. 2012. 322 f. Dissertação (Mestrado em Educação). Faculdade de Humanidades e Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012.

10 comentários:

  1. Olá Márcio qual a melhor metodologia para analise das histórias em quadrinhos? Análise de discurso ou análise de imagem? A interraçâo que o leitor tem com a história em quadrinhos se da a partir da verossimilhança e do reconhecimento de elementos que o autor/ilustrador introduz na história para propiciar o efeito de real do que se esta lendo?
    Maycon André Zanin

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    1. Caro Maycon, não existe uma metodologia única para se examinar os quadrinhos. Depende muito do tema ou do interesse do professor ou do pesquisador. Particularmente a análise do discurso tende a comparar os quadrinhos com aspectos da cultura textual. Temos que considerar que HQs são uma linguagem da cultura visual. Se é para analisar a imagem que seja feita considerando um aspecto essencial dos quadrinhos: a sequencialidade. O que vejo de trabalhos sobre quadrinhos que isolam quadros da sequência narrativa é fora de série. Isso é particularmente um equívoco bastante comum dentro das análise de quadrinhos. Além disso, por ser uma linguagem que mescla e dialoga em termos culturais com diferentes gêneros discursivos - desenho, cinema, fotografia, videogame, textos verbais, etc. - as HQs fazem com que o estudioso de qualquer campo tenha que, de maneira inter/trans/multidisciplinar, lidar com diversos saberes (alguns nem sempre consagrados pela academia). Até a "cultura inútil" ajuda.

      Sobre o segundo ponto: todo e qualquer quadrinho estabelece um diálogo com o mundo em que foi criado e é particularmente desse diálogo que leitores podem minimamente compreender determinada trama. Mesmo aquelas narrativas mais absurdas, fantasiosas e que aparentemente não teriam diálogo algum com o mundo social são produzidas num tempo específico e se são compreensível é justamente pela ressonância que constroem com o mundo que as produz, que as faz circular e que possibilita serem recebidas ou lidas por leitores. Esse efeito de real está sempre presente de duas formas: antes, pela articulação que os quadrinhos estabelecem com o mundo, e depois, quando determinado leitor compreende aspectos da trama como sendo traduzíveis pela sua cultura.
      Qualquer dúvida basta escrever.

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    2. Esqueci de assinar: Márcio dos Santos Rodrigues

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  2. O texto é objetivo e direto, perfeito para a realidade de professores e professoras. O que gostaria que você falasse um pouco mais a respeito é sobre a criação de gibitecas no espaço escolar. De que modo podemos começar uma? Quais são as sugestões dadas para que este seja um espaço de educação e debate?

    Jeane Carla Oliveira de Melo

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    1. A criação de uma gibiteca não é tão simples quanto pode parecer. É preciso antes de tudo que a comunidade escolar tenha uma postura de respeito e compreenda os quadrinhos como um objeto cultural que serve ao conhecimento e não somente ao entretenimento. Para criar uma temos que primeiramente criar condições de usos e legitimação dos quadrinhos. Em segundo temos que pensar em quais materiais devem ser incluídos. Isso leva em consideração aspectos como a faixa etária e a especificidade do público escolar. O professor deve também ter conhecimento a respeito da linguagem para que aquele espaço não seja apenas um almoxerifado ou um espaço morto. Gibitecas podem ser espaços vivos desde que sejam consultadas.
      Espero ter respondido de maneira satisfatória.
      Márcio dos Santos Rodrigues

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  3. Acredito eu, que o uso de história em quadrinhos dentro da sala de aula tem muito a contribuir para o aprendizado dos(as) alunos(as). Pretendo futuramente usar em meu estágio o livro “Maus” de Art Spiegelman, que retrata a Segunda Guerra Mundial por meio de HQs, e gostaria de saber quais são as suas sugestões para que o professor ao utilizar de HQs como material didático não limite apenas como suporte de informações (como cita acima).

    Bruna Brandel Meleck

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    1. Cara Bruna, também considero isso, que os quadrinhos pode ser examinados em sala de aula e contribuir para a aprendizagem histórica. Para que você não interprete os quadrinhos apenas como suporte de informações considere que a fonte que vai trabalhar é uma prática que constrói sentidos e não apenas informa. A própria existência dela produz efeitos do mundo. Reduzi-la exclusivamente aos aspecto do discurso e considerá-la tão somente como representação do ponto de vista estético é fazer uma história desencarnada. Você terá que ao trabalhar com Maus cruzar a fonte com outras HQs e diferentes fontes que não sejam quadrinhos para construir a trama histórica sobre o holocausto. Terá que considerar que Maus, por exemplo, é construída em termos históricos em um momento em que o testemunho e a memória em torno do holocausto se tornam parte constitutiva da história norte-americana e não apenas da segunda guerra mundial. Maus não simplesmente retrata...ele dialoga com a segunda guerra e tenta produzir sentidos, mais do que simplesmente ser um suporte de informações sobre a segunda guerra. O próprio Art Spiegelman desconstrói o Maus em Metamaus. No seu trabalho acredito que em algum momento você terá que ler e relacionar o Maus com o "Judenhass" do quadrinista Dave Sim ou "O boxeador", HQ baseada no relato de sobrevivência do pugilista judeu Hertzko Haft (É um trabalho do alemão Reinhard Kleist).Nesse ano lançarei uma coletânea pela editora Prismas, em uma coleção que coordeno "Estudos das Histórias em Quadrinhos" e lá teremos um estudo mais aprofundado sobre Maus e sobre holocausto. Nem é um trabalho meu, mas é algo que como estudioso dos quadrinhos tenho relativo conhecimento e compartilho aqui alguns pontos que considero importantes para o teu trabalho.

      Márcio dos Santos Rodrigues

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    2. Bruna, sugiro ainda que você leia um capítulo do François Hartog no livro "Evidência da História - o que os Historiadores Veem". Ele discute a emergência da testemunha na História em virtude do holocausto ter ganhado destaque. Quando li pensei na hora em "Maus".
      Márcio dos Santos Rodrigues

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    3. correção na primeira resposta: que os quadrinhos podem ser examinados(primeira linha)

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    4. Márcio, obrigada pelas dicas e indicações! Tenho certeza que serão muito úteis nas minhas futuras aulas. E tenho grande interesse em ler a coletânea.

      Bruna Brandel Meleck

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