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Luciano Vianna

O MEDIEVALISMO BRASILEIRO E A SUA CONTRIBUIÇÃO PARA O ENSINO DE HISTÓRIA MEDIEVAL: UMA ABORDAGEM BIBLIOGRÁFICA
Luciano José Vianna*

Introdução
Recentemente acompanhamos os debates sobre o Ensino de História na BNCC, cuja proposta inicial limitava os conteúdos de alguns períodos, dentre eles o Medievo (Base Nacional Comum Curricular). Entretanto, no que diz respeito à História Medieval, tais debates ocorrem há tempos em nosso país especificamente com foco no desenvolvimento, na perspectiva interdisciplinar e na reflexão sobre o vínculo entre a História Medieval e o nosso território.
Nos últimos vinte anos ocorreu uma ampla divulgação dos estudos medievais no Brasil, com a realização de diversos eventos, constituição de grupos de estudo e pesquisa e a especialização cada vez maior por parte dos pesquisadores. Este panorama proporcionou não somente a consolidação dos estudos medievais no território brasileiro, mas também possibilitou uma reflexão sobre a importância da presença do mesmo em nossos currículos no âmbito do ensino, principalmente a partir do ponto de vista que somos parte de uma civilização ocidental.
Face à conjuntura de reformulação da BNCC, o Ensino de História Medieval no Brasil ficou no primeiro plano dos debates nas universidades, nas mídias e redes sociais. Para pensar o Ensino de História Medieval em nosso país devemos observar diversas perspectivas, como uma problemática holística que envolve várias questões. Neste sentido, a proposta deste texto é apresentar o desenvolvimento, a perspectiva interdisciplinar e a reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território através da análise de diferentes referências bibliográficas produzidas por medievalistas brasileiros ou que lecionaram no Brasil publicadas nos aproximadamente últimos vinte anos.

O Ensino de História e o Ensino de História Medieval no Brasil: alguns aspectos
A observação feita por Lenia Márcia de Medeiros Mongelli sobre a situação dos livros didáticos que abordam conteúdos de História do Brasil serve como ponto de partida para nossas reflexões:
Uma rápida consulta aos livros didáticos destinados ao que hoje se chama ‘ensino médio’ – de onde saem nossos universitários – denuncia talvez o adversário mais resistente dos estudos medievais no Brasil: para a maioria inconteste do público medianamente culto, nossa história começa no século XVI, com Pedro Álvares Cabral e o ‘achamento’ do Brasil, com a era das Navegações. Este é o prato oferecido à degustação nas escolas, inclusive pelas obras paradidáticas, publicadas pelas principais editoras do país.” (MONGELLI, 2001, 146-154).
As palavras de Lenia Márcia Mongelli nos proporcionam a reflexão sobre o Ensino de História em sala de aula. Tais declarações confirmam que muitas vezes o conteúdo ministrado não é discutido e problematizado em sala de aula, principalmente no sentido de estabelecer uma continuidade entre a História Medieval e a História do Brasil, de forma que o discente, em seu processo de formação como professor de História, não se torna consciente da reflexão histórica que deve realizar ao abordar e lecionar conteúdos oriundos do período medieval.
Ademais, as palavras destacadas indicam um problema que está vinculado a uma série de informações presente não somente no âmbito acadêmico, mas também na prática do Ensino de História na sala de aula. Ao considerar o século XVI como o início da História do Brasil, desconsidera-se todas as influências das produções literárias e visuais que encontramos nos séculos XV, XIV, XIII, XII, etc... na Europa medieval, assim como diversos outros aspectos que apresentam vínculos com a história brasileira (e também da América) no século XVI, como por exemplo a produção historiográfica medieval com seus diversos gêneros históricos, o ressurgimento das cidades a partir do século XII, o surgimento das universidades, o desenvolvimento comercial em termos de Europa ocidental desde o século XII, entre outros (devemos alertar que a perspectiva aqui abordada se refere, por uma questão de especialização, aos aspectos da Europa medieval, mas claro está que a abordagem de outras perspectivas devem ser realizadas, como por exemplo a própria história do território do continente americano antes da chegada do homem europeu).
Segundo Circe Maria Fernandes Bittencourt, as finalidades do Ensino de História são: construir uma identidade nacional; constituir identidades; formar o cidadão crítico e político; formar os cidadãos intelectualmente e proporcionar uma formação humanística aos educandos (BITTENCOURT, 2004, 99-132). Neste sentido, um dos objetivos do Ensino de História é demonstrar para o aluno como a realidade social, cultural, política e econômica existente durante determinada época foi modificada, adaptada e representada e, no caso da abordagem de um período como a história do século XVI no Brasil, como a continuação desta mesma realidade foi adaptada a partir de uma experiência anterior. Para realizar este processo, (e tangenciando um pouco com o aspecto da didática, embora não seja o principal aspecto a ser destacado nestas páginas), de acordo com Schmidt, entendemos que a sala de aula é um espaço onde ocorre uma relação de interlocutores construindo sentidos para proporcionar “condições para que o aluno possa participar do processo do fazer, do construir a História” (SCHMIDT, 2004, 54-66). Neste sentido, neste processo do “construir a História”, deve-se levar em consideração toda a formação dos personagens europeus que chegaram às terras americanas em suas perspectivas culturais, políticas, sociais, etc... para compreendermos alguns aspectos do processo que se desenvolveu em terras americanas a partir do século XVI.
Ao destacar uma breve perspectiva com base no desenvolvimento, na interdisciplinaridade e na reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território, desejamos salientar a necessidade da cooperação constante entre ensino e pesquisa para o desenvolvimento do Ensino de História Medieval no país, promovendo, desta forma, na perspectiva de Bergmann, uma reflexão histórico-didática, considerando que o processo didático deve se preocupar os efeitos da consciência histórica no contexto no qual o ensino é realizado:
Uma reflexão é histórico-didática na medida em que investiga seu objeto sob o ponto de vista da prática da vida real, isto é, na medida em que, no que se refere ao ensino e à aprendizagem, se preocupa com o conteúdo que é realmente transmitido, com o que podia e com o que devia ser transmitido. Refletir sobre a História a partir da preocupação da Didática da História significa investigar o que é apreendido no ensino de História (é a tarefa empírica da Didática da História), o que pode ser apreendido (é a tarefa reflexiva da Didática da História) e o que deveria ser apreendido (é a tarefa normativa da Didática da História) (...). Nesse sentido, a didática da História se preocupa com a formação, o conteúdo e os efeitos da consciência histórica num dado contexto sócio histórico (BERGMANN, 1989/1990, 29-42).
Uma proposta com base na formação de cidadãos política e intelectualmente críticos a partir de uma perspectiva de reflexão histórico-didática que problematize o objeto/conteúdo abordado, almejando alcançar a formação da consciência histórica, minimiza a possibilidade do futuro professor encontrar uma discrepância entre as práticas que aprendeu na universidade e o que ensinará em sala de aula. Neste sentido, o conteúdo aprendido pelo futuro professor de História não seria estritamente reproduzido em sua atuação na sala de aula: antes haveria um processo no qual este professor-pesquisador, através da pesquisa e de sua aprendizagem pedagógica, elaboraria uma proposta de ensino a partir de sua aprendizagem e não tomando como base única e exclusiva o livro didático.
Dessa forma, ao problematizar o conteúdo de História Medieval propondo uma reflexão histórico-didática para os discentes, a intenção é proporcionar bases e fundamentos para que o mesmo utilize o livro didático juntamente com outras fontes:
O livro didático, em si, não constitui um problema propriamente dito. A forma como ele é utilizado é o que faz dele um problema. Para o professor que concilia o conteúdo do livro didático com a utilização de outras fontes, esse livro jamais será tido e/visto como um problema (...). (HIPÓLITO).
Alguns aspectos do Ensino de História Medieval podem ser abordados a partir de reflexões oriundas das pesquisas sobre o período realizadas no Brasil. De forma geral, o que se percebe nas pesquisas realizadas no Brasil sobre o Medievo é que este período se tornou diverso e múltiplo em suas espacialidades e temporalidades, sendo impossível abordá-lo a partir de uma perspectiva única, padronizada, como se a mesma experiência que ocorreu em determinado território durante este período se repetisse em outros contextos. De acordo com José Rivair de Macedo:
É evidente que nos últimos trinta anos muito se pesquisou a respeito das especificidades nacionais e regionais da Europa Medieval, dos grupos sociais, etários e de gênero na Idade Média; muito se debateu a respeito dos sistemas de valores, das formas culturais, das representações e dos traços do imaginário medieval. A Idade Média ensinada na escola, todavia, não é Idade Média dos pesquisadores (MACEDO, 2003, 109-125).
A perspectiva apresentada por José Rivair Macedo, de que o Medievo apresentado nas escolas ainda não é o dos pesquisadores, repete-se nos dias de hoje. Alguns livros didáticos utilizados atualmente não apresentam, principalmente, o aspecto da diversidade e da multiplicidade voltada para o Medievo em diversos temas: políticos, econômicos, religiosos, etc... No caso do Medievo sabemos que o mesmo pode ser dividido em diversas etapas, as quais apresentam diferenças em diversos aspectos: Primeira Idade Média, Alta Idade Média, Idade Média Central e Baixa Idade Média (FRANCO JÚNIOR, 2001, 15-17, 198). Dessa forma, este espaço-tempo algumas vezes ainda é visto em uma perspectiva homogênea, sem a preocupação de repensar conceitos e suas aplicabilidades espaciais e temporais para os diversos casos existentes e que ficam evidenciados em se tratando de pesquisa histórica e dos resultados finais das mesmas, como artigos, dissertações e teses.

Pesquisar o Medievo no Brasil: desenvolvimento, interdisciplinaridade e vínculo com a história local
Atualmente, os estudos realizados no Brasil sobre o Medievo são contrários à perspectiva tradicional sobre o período, ou seja, uma época tenebrosa, sem avanços tecnológicos e científicos e cheia de superstição, onde havia um domínio total da Igreja sobre os comportamentos sociais e culturais. Ao contrário, este período tem sido analisado e compreendido de uma forma completamente diferente, graças principalmente aos estudos de Jacques Le Goff. Novas leituras sobre o Medievo foram realizadas, aproximando-se aos seus diversos significados originais e, consequentemente, à sua importância em termos de diversidades temáticas a serem estudadas, de forma que hoje “nenhum erudito defenderia com seriedade aqueles velhos chavões” (MACEDO, 2003, 109-125).
Alguns textos publicados entre os anos finais da década de noventa do século passado e os primeiros anos do século XXI, escritos por medievalistas brasileiros ou que atuaram como professores de História Medieval no Brasil, indicam diversos aspectos sobre o status quaestionis da História Medieval em nosso país. Percebemos uma série de dificuldades para o desenvolvimento dos estudos medievais em território brasileiro, a ponto de afirmarem que os estudos medievais no Brasil eram muito limitados, tanto no aspecto de formação de profissionais como no espaço destinado à área, de forma que não havia “una tradición, una escuela y, sobre todo, no existen recursos para aplicar en la preparación y formación de especialistas” (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228). Outra questão presente era a falta de bibliografias, de fontes, de novas publicações, o restrito acesso a revistas estrangeiras, o pouco espaço para fomentar um debate sobre o período e as trocas de ideias científicas, além da formação limitada e da falta de apoio institucional para quem se dedicava ao estudo desta área (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228).
Entretanto, mesmo com estas limitações, alguns autores já observavam o Medievo de forma diferente, principalmente através do vínculo que o mesmo apresentava com nossa contemporaneidade. De um mundo completamente estranho passou-se a compreendê-lo como um período próximo, que devia ser conhecido e que era necessário à formação intelectual do historiador envolvido com pesquisas sobre a História do Brasil. Dessa forma, passou-se a compreender o Medievo como um período no qual foi criado o mundo moderno e no qual o nosso cotidiano apresentava diversos vínculos com aquele contexto, como as universidades, os bancos, a imprensa, e principalmente os “sistemas de representação política e os fundamentos da mentalidade científica que caracterizam a civilização ocidental.” (FERNANDES, 1999).
Já havia, portanto, uma tentativa de compreender o Medievo como uma época com a qual nós, herdeiros de uma cultura ocidental, mantínhamos uma continuidade. Esta busca por uma identidade ou por uma aproximação com o período foi crucial para estabelecer um vínculo com o mesmo e também para colocar os estudos medievais em evidência na produção historiográfica brasileira. Além disso, embora o desenvolvimento das pesquisas brasileiras sobre a História Medieval apresentasse uma influência francesa, principalmente advinda do contato com os Annales (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297; PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228) e com os influenciadores bibliográficos desta nova forma de ver o Medievo, como Huizinga, Le Goff e Duby (FERNANDES, 1999), tal contato favoreceu a renovação dos estudos sobre o Medievo, principalmente multiplicando suas abordagens, observando este período a partir de uma perspectiva interdisciplinar e com uma diversidade de temas, o que ajudou no processo de reabilitação da História Medieval (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228).
O próprio fato de tornar-se uma disciplina importante foi ganhando destaque, o que influenciou diretamente na consideração da História Medieval para a formação do historiador brasileiro, não somente para entender o passado português, mas sobretudo para compreender a história e a cultura dos países do continente americano, o que se refletiu em uma preocupação cada vez maior com os estudos sobre o mundo ibérico medieval (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297). Neste sentido, a relevância dos estudos medievais tornava-se evidente e mais próxima ao identificar neste período da história diversas continuidades e presenças com a nossa contemporaneidade:
Pode-se afirmar, portanto, que os estudos medievais também auxiliam a compreender a história e a cultura dos países americanos: a própria expansão marítima, que ocasionou a descoberta do Novo Mundo, tem suas raízes solidamente vincadas na Idade Média. Temas da literatura medieval, como a gesta de Carlos Magno, permanecem vivos ainda hoje na poesia de cordel nordestina; além disso, é sabido que diversos escritores brasileiros de nosso século, entre os quais Manuel Bandeira, Guimarães Rosa e Adélia Prado, beberam fartamente de fontes medievais. (FERNANDES, 1999).
Desse modo, embora a situação dos estudos desenvolvidos no Brasil sobre o Medievo fossem iniciais e apresentassem diversos problemas, havia uma ideia geral de que os mesmos eram importantes para a formação do historiador, principalmente para aqueles que atuariam com temas voltados para a História do Brasil (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994, 223-228).
O diagnóstico proporcionado por Figueiredo Nogueira nos primeiros anos do século XXI demonstrou a expansão dos estudos medievais em diversas universidades brasileiras, identificando principalmente os cursos de mestrado e doutorado que apresentavam em suas produções dissertações e teses produzidas sobre temas medievais, assim como grupos de estudo e pesquisa e laboratórios voltados para discussões sobre o Medievo, ainda que grande parte desta realidade estivesse presente nas regiões sul e sudeste do país (FIGUEIREDO NOGUEIRA, 2002, 291-297). Entretanto, mesmo com esta expansão dos estudos medievais no ensino superior, sua presença no ensino fundamental e médio ainda era muito ínfima, restando-lhe, como afirma Leão, “o espaço da pós-graduação”:
Em tal contexto, não é de espantar que haja por aqui pouco espaço para os estudos medievais. Afinal, que fazedores de currículo, que apontadores de caminhos, para não dizer de diretrizes, ousariam incluir em suas propostas estudos tão inúteis? Afinal, que problema premente do país se resolveria com tais estudos? Que solução imediata eles ajudariam a trazer para as necessidades do povo? O pragmatismo latente em tais tipos de questões pode explicar, em parte, a situação dos estudos medievais no Brasil. Inexistentes no ensino fundamental (o que se entende, aliás), mal aflorados no ensino médio, reduzidos nos cursos de graduação nas áreas em que poderiam caber, resta a tais estudos o espaço da pós-graduação, para onde foram pouco a pouco sendo ‘acuados’. Este é o destino, no Brasil, de disciplinas como o latim, a história da língua, a filologia românica, a história medieval, a filosofia medieval, a literatura medieval e outras: resta-lhes o espaço da pós-graduação (LEÃO, 2001, 138-145).
O Medievalismo brasileiro permaneceu por décadas sem estabelecer um diálogo profícuo internamente entre as subáreas, tais como História, Filologia, Literatura, Filosofia, História da Arte, etc..., característica que se modificou com a presença das propostas da História Cultural (FRANCO JÚNIOR, MONGELLI, VIEIRA, 2008, 177-219). Por outro lado, a cada vez maior presença da disciplina História Medieval nos currículos das universidades brasileiras foi acompanhado pelo processo de estabelecimento de um diálogo entre os diversos campos do saber que envolviam os estudos medievais, principalmente com as áreas do conhecimento citadas acima. Gradativamente, a História Medieval começou a adquirir mais espaço na estrutura política dos departamentos e das agências de pesquisa. Devemos observar também que esta mudança ocorreu a partir de uma perspectiva global relacionada à historiografia: na transição dos anos 70 para 80 observa-se uma série de reflexões teórico metodológicas principalmente advindas da História Cultural, na qual o aspecto interdisciplinar era um dos mais evidentes e necessários (COELHO, 2006, 29-33). Neste sentido, as atuais demandas dos estudos sobre a História Medieval no Brasil giram em torno à necessidade de se estabelecer um diálogo entre os diversos campos do saber promovendo uma interação interdisciplinar na pesquisa histórica, abordando perspectivas tais como da Paleografia, Codicologia, conceitos literários e filosóficos, gêneros literários, entre outros (SILVA, 2013, 1-15). De todas as formas, o desenvolvimento dos estudos medievais acompanhou a institucionalização dos estudos históricos em terras brasileiras (ALMEIDA e SILVA, 2016, 13-16).
O diálogo estabelecido com centros de pesquisa e movimentos internacionais também se tornou possível nos últimos anos. A formação de diversos grupos de pesquisa com a participação de pesquisadores estrangeiros, e redes de colaboração com a presença de pesquisadores brasileiros, favoreceu a interação e fomentou experiências de diálogo internacional (SILVEIRA, 2016, 39-59).
Com isso, novas abordagens, novos métodos e, principalmente, novos temas surgiram no cenário historiográfico medieval. Podemos citar, por exemplo, a publicação da coletânea de verbetes intitulada Dicionário Temático do Ocidente Medieval, publicado em dois volumes e traduzido para o português em 2002, que fornece ao pesquisador brasileiro uma diversidade temática em relação ao Medievo com oitenta e dois artigos, tais como “Além”, “Alimentação”, “Anjos”, “Bíblia”, “Catedral”, “Cidade”, “Deus”, “Diabo”, “Heresia”, “Igreja e Papado”, “Indivíduo”, “Literatura”, “Marginais”, “Memória”, “Mercadores”, “Natureza”, “Parentesco”, “Peregrinação”, “Santidade” “Sexualidade”, “Tempo”, entre outros. A diversidade de temas apresentados nesta obra proporciona um novo olhar sobre o período, desvinculando-se “dos setores tradicionais da historiografia como ‘Arqueologia’, ‘História da Arte’, ‘História Econômica’” (LE GOFF e SCHMITT, 2002, 11-18).
Com base no que foi apresentado, destacamos alguns aspectos proporcionados pelo desenvolvimento do Medievalismo brasileiro e que podem ser abordados no Ensino de História Medieval no Brasil.
1. Aspectos temáticos. Um exemplo desta mudança temática no cenário historiográfico sobre o Medievo é a presença cada vez maior dos estudos vikings e escandinavos em terras brasileiras. Um dos principais problemas dos estudos vikings no Brasil diz respeito à interpretação a partir do imaginário moderno, o qual associa algumas imagens que foram fruto da idealização romântica do século XIX, as quais apresentam os vikings como guerreiros com capacetes enormes e com chifres laterais, como seres impiedosos e cruéis. Os principais responsáveis por esta divulgação errônea são a cultura de massa e a indústria cinematográfica. Ademais, de certa forma esta visão errônea do período viking também se transfere para o livro didático, que além dos diversos erros e equívocos citados acima, dedicam um curto espaço para o período (LANGER, 2002, 85-98).
2. O passado medieval português. De acordo com Macedo, o processo de “descolonização do ensino da Idade Média” refere-se ao fato de se observar com mais atenção os aspectos que vinculam a História Medieval peninsular ibérica à chegada do homem europeu às terras americanas sobre o aspecto da continuidade. Dessa forma, enfatizar os aspectos deste território europeu seria mais viável em termos de Ensino de História Medieval “pelo simples fato de pertencemos a um conjunto cultural específico, no caso, o ibero-americano.” Neste sentido, poder-se-iam revelar características do passado medieval que ainda interagem com o presente brasileiro (MACEDO, 2003, 109-125).
3. A continuidade do Medievo no Brasil. Um dos aspectos mais importantes no que diz respeito à História Medieval e sua vinculação com nosso território é referente aos sistemas de valores e às “raízes” brasileiras que estariam localizadas no passado medieval de Portugal. Um dos principais problemas apontados pelos historiadores sobre a História do Brasil é a realização do estudo da história do nosso território sem considerar a longa experiência do homem europeu em sua formação social, política e cultural (FRANCO JÚNIOR, 2008, 80-104). Os períodos finais do Medievo em Portugal, de certa forma, repercutiram no contexto colonial, principalmente a partir do aspecto das continuidades (FRANCO JÚNIOR, MONGELLI, VIEIRA, 2008, 177-219). Em todo caso, o Medievalismo brasileiro já apresenta em seu discurso a ideia de que os estudos medievais em nosso país ajudariam a compreender quais aspectos do Medievo se encontram nas estruturas mais elementares da civilização brasileira (AMARAL, 2011, 446-452).
4. O século XVI. Atualmente em um dos projetos de pesquisa que desenvolvemos, intitulado As crônicas do século XVI: o homem entre o Medievo e o “Novo Mundo” (VIANNA, 2014), analisamos diversas crônicas portuguesas e castelhanas compostas no século XVI. Tais crônicas apresentam a característica do contato entre dois mundos, ou seja, a percepção do homem entre o Medievo e o “Novo Mundo”, as quais foram compostas em um contexto de chegada do homem europeu ao continente americano. Tais objetos historiográficos representam, a partir da perspectiva europeia, a manifestação dos primeiros contatos estabelecidos entre estes dois mundos, onde os aspectos do imaginário medieval se sobrepuseram e foram utilizados para explicar, a partir de uma perspectiva medieval, as primeiras percepções sobre o território americano. Além disso, destacam em seu conteúdo uma série de aspectos voltados para uma presença comportamental medieval em seus fólios. Por exemplo, a mentalidade dos personagens que as escreveram se reflete precisamente nestes documentos, pois os mesmos demonstram os seus medos, anseios, curiosidades, evidenciando, em suas primeiras experiências com as terras do continente americano, características vinculadas ao seu imaginário.

Conclusão
Nestas páginas nossa intenção foi abordar, de forma inicial e através da análise de um corpusbibliográfico produzido nos últimos vinte anos, os aspectos que o Medievalismo brasileiro apresenta, realizando uma reflexão sobre o vínculo da História Medieval com nosso território. Através de diversas publicações de medievalistas brasileiros, assim como de professores estrangeiros que atuaram no país, podemos observar o surgimento e o desenvolvimento do Medievalismo no Brasil, o qual apresentou diversos problemas e desafios para a manutenção da disciplina em termos curriculares. Observamos também os aspectos da pesquisa na área, como a mesma foi realizada em nosso território nos aproximadamente últimos vinte anos e como favoreceu para o avanço de uma melhor compreensão sobre o período.
Observamos também que os estudos medievais no Brasil, com o passar do tempo, apresentaram um maior diálogo interdisciplinaridade, o que favoreceu um contato maior e cada vez mais evidenciado entre a diversas áreas que estudam o Medievo, tais como História, Filologia, Filosofia, História da Arte e a Literatura. Este diálogo proporcionou uma busca cada vez maior por novas abordagens temáticas e transversais, ampliando os temas referentes ao período e estabelecendo cada vez mais um diálogo interdisciplinar.
Por último, porém não menos importante, este período deixou de ser compreendido como um contexto distante no tempo e estranho à nossa realidade. Passou-se a estabelecer com o mesmo diversos vínculos com nossa contemporaneidade, destacando-o como próximo em diversas manifestações contemporâneas. Este foi um dos principais motivos para colocar os estudos medievais e o Ensino de História Medieval na ordem do dia. Ao adotar esta perspectiva de vínculo e de continuidade entre alguns aspectos da História Medieval e da História do Brasil, principalmente considerando a formação do homem europeu em questões sociais, políticas e culturais, podemos compreender melhor como ocorreu a chegada destes personagens às terras americanas.

Referências bibliográficas
Fontes
Documento da Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio.

Bibliografia
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VIANNA, Luciano J. As crônicas do século XVI: o homem entre o Medievo e o “Novo Mundo”. Projeto de Pesquisa desenvolvido na Universidade de Pernambuco/Campus Petrolina entre abril de 2016 e março de 2020 (em andamento).

Notas:
*Professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE)/Campus Petrolina
Doutor em Cultures en contacte a la Mediterràniapela Universitat Autònoma de Barcelona (UAB)
Membro do Institut d’Estudis Medievals (UAB-IEM)
Coordenador do Spatio Serti – Grupo de Estudos em Medievalística (UPE/Campus Petrolina)


7 comentários:

  1. Vemos que os Estudos Medievais são importantes de modo a elencar aspectos da História do Brasil, contudo, tal ramo de estudos vem sendo questionado pelo BNCC. Em sua opinião, o que deve ser feito para que os estudos desenvolvidos pelos medievalistas, nas universidades, cheguem aos alunos do Ensino Básico, pois, vemos muitas vezes um plano de estudos sobre Idade Média bem fechado, e com isso, muitas vezes acaba sendo desinteressante para o aluno.

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    1. Olá Alex, aqui é o Prof. Luciano. Em um curso de formação de professores devemos destacar justamente os aspectos que representam uma continuidade com a expansão europeia em terras americanas. O homem que chegou às terras americanas era um homem que convivia em um âmbito citadino - grande parte das cidades reaparecem no século XII no Medievo europeu - e já estava presente em um âmbito universitário - as quais também surgiram no século XII e posteriormente na América -, ou seja, este homem que veio da Europa e que se estabeleceu em terras americanas representa uma "continuidade" com sua realidade anterior. Isso também interfere no próprio ato de ver a História a partir de "períodos" (Antigo, Medieval, etc...), o que, de certa forma, impossibilita esta possibilidade da continuidade. Um livro de Jacques Le Goff, recentemente traduzido para o português, apresenta esta perspectiva ("A história deve ser dividida em pedaços?"). Portanto, acredito que os estudos desenvolvidos no âmbito universitário podem chegar aos alunos do Ensino Básico justamente através da formação de professores, assim como também de uma abordagem da disciplina que destaque as diversas continuidades "medievais" que farão parte do mundo colonial.

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  2. Minha pergunta é com relação à BNCC e o conteúdo sobre a Idade Média. Na primeira versão do documento, o conteúdo de história medieval foi totalmente deixado de lado, na segunda versão do documento, mesmo com as discussões e contribuições de diversas pessoas, o documento continuou apresentando algumas falhas, não apenas no conteúdo sobre a Idade Média. Esse ano a BNCC chegou à sua terceira versão, na qual o documento estava previsto para março. A partir disso, gostaria de saber a sua opinião sobre o que podemos esperar do conteúdo sobre o medievo com essa terceira versão, que provavelmente será a edição definitiva? Láisson Menezes Luiz

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    1. Olá Láisson, aqui é o Prof. Luciano. Sua pergunta é muito interessante e importante. Acredito que, a partir das discussões realizadas e da proposta clara sobre a importância de se estudar o Medievo, podemos esperar uma presença mais constante do conteúdo sobre o mesmo, principalmente um conteúdo que aborde uma continuidade com o século XVI em terras americanas, como destaquei no item 3 da conclusão do texto. Também como destaquei no texto, as pesquisas sobre o Medievo abordam a importância de se estudar o período em diversas perspectivas, principalmente aquela que está relacionada com a história do Brasil. Ou seja, podemos esperar sobre o conteúdo relacionado ao Medievo na terceira versão uma abordagem mais ampla sobre o período e que possibilite ao professor abordá-lo de forma completa.

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  3. Boa noite, Belo trabalho Professor. A Idade Média é um tema muito idealizado pelas pessoas e muito presente na cultura jovem hoje. Temos inúmeros jogos e sérias (Vikings, etc.) com essa temática. Assim muita das vezes o aluno chega em sala cheio de ideias e visões sobre este período em sala de aula. Na sua visão essa presença do medievo na cultura ner-pop facilita ou dificulta no ensino desse período? Marlon Barcelos Ferreira

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    1. Olá Marlon, aqui é o Prof. Luciano. Excelente pergunta. Acredito que facilita, pois os filmes, as séries, os jogos eletrônicos, etc... podem servir como meios atrativos para se ensinar este período. O que devemos atentar, neste caso, é a forma crítica de se utilizar o material. Ao utilizar uma cena de um filme relacionado ao Medievo, atentar, por exemplo, para a sua contextualização, o tema destacado na cena, etc... e também destacar para a cena analisada como uma interpretação, algo que pode se aproximar (e não representar exatamente) ao período estudado.

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