Páginas

Kamila Czepula

A CHINA NOS LIVROS DIDÁTICOS: O ESTADO DE UMA QUESTÃO
Kamila Czepula
Mnt. História UNESP


Os estereótipos existentes sobre a China em nossa sociedade ainda são vastos. Logo, se Marc Ferro estava correto quando afirmou: “Não nos enganemos: a imagem que fazemos de outros povos, e de nós mesmos, está associada à História que nos ensinaram quando éramos crianças” (1983, p. 11), a indagação: como a China está sendo abordada em sala de aula nos anos finais do Ensino Fundamental? Faz-se pertinente.
Muitos são os caminhos que poderiam ser percorridos na busca de respostas a tal questionamento, mas, por ser o livro didático um material utilizado por 98% dos professores de escolas públicas do Brasil, sendo, que 1% não o usa porque a escola não tem (http://www.qedu.org.br/brasil/pessoas/professor); e por muitas vezes, ser esse, o único recurso teórico-metodológico e de conteúdo empregado pelos profissionais do saber em sala de aula, devido, a uma associação de fatores como: baixos salários, muitos alunos e aulas para ministrar (GONÇALVES, 2001, p.9), detectou-se que analisar como a China aparece nos livros didáticos poderia ser um ótimo ponto de partida.
Frente à amplitude de fontes foi necessário estabelecer um recorte de análise, assim, as considerações apresentadas nesse breve texto foram obtidas com base nas referências apresentadas no Guia do livro didático para o ano letivo de 2017, disponível no site do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). Não nos dedicaremos, aqui, a uma discussão minuciosa sobre os processos evolutivos do PNLD, nem dos critérios de avaliação para determinar a aprovação ou não das obras a serem adquiridas pelo programa, uma vez que isso nos conduziria a um movimento que fugiria ao objetivo dessa apresentação. O que podemos apontar, em termos gerais, é que o Guia nada mais é do que um texto, que contém informações e resenhas detalhadas de todas as coleções aprovadas pelos pareceristas da área, e é por meio dessa descrição que os professores da rede pública realizam a escolha dos livros didáticos com os quais trabalharão.
A avaliação, como a descrição das obras do Guia do livro didático de história pesquisado foram liderados pela Universidade Estadual de Londrina (UEL); no total, 14 coleções adentraram no Guia, são elas: Historiar; Projeto Mosaico - História; Vontade de Saber – História; Projeto Araribá - História; História para nosso tempo; Estudar História: das origens do homem à era digital; História nos dias de hoje; Projeto Teláris - História; Projeto Apoema – História; História.Doc; Piatã - História; História, Sociedade & Cidadania; Jornadas.Hist – História; Integralis - História. As resenhas elaboradas no Guia sobre as coleções anteriormente citadas contam com os seguintes subtítulos: visão geral, sumário sintético, descrição, análise da obra, e em sala de aula; essa subdivisão apresenta de maneira clara e coerente todos os conteúdos, proposta-pedagógica, o tratamento escolar das fontes históricas, a relação entre texto-base e atividades, as questões da temporalidade histórica, a temática afro-brasileira e indígena, existentes nos quatro exemplares de cada coleção.
Diante desse cenário estrutural, observamos os seguintes dados:
  • Das 14 coleções aprovadas, 11 delas têm um capítulo dedicado a China Antiga no exemplar elaborado para o 6º ano.
  • Das três coleções que não abordaram o tema China Antiga ou Antiguidade oriental no 6º ano, duas delas (História nos dias de Hoje, da editora LEYA e Integralis – História, da editora IBEP) não apresentaram nenhum conteúdo consistente sobre a China nos demais livros que compõem sua coleção, só fazem referência à mesma rapidamente ao tratar do Imperialismo. A outra coleção (História para o nosso tempo, da editora positivo) faz uma abordagem sobre China apenas no livro do 9º ano ao trabalhar a Revolução chinesa.
  • De 11 coleções que apresentaram China Antiga em seus conteúdos, apenas duas (História, sociedade & história da editora FTD e Projeto Apoema da editora do Brasil), desenvolveram nos demais exemplares das suas coleções, mas especificamente no exemplar referente ao 7º ano, conteúdos sobre a China que foram além das breves citações encontradas dentro dos temas Imperialismos e Socialismo.  

Cada coleção tem quatro exemplares, por sua vez, cada exemplar possui entre 200 a 350 páginas. Que cada coleção possua de um total de 800 páginas, dessas, o conteúdo referente à China de qualquer uma das coleções apresentadas não ultrapassa 50 - e tal constatação, é no mínimo preocupante. Mas esse fato pode ficar assustador, se pensarmos que esse conteúdo encontrado nos livros didáticos é, muitas vezes, bem maior do que aquele que o professor regente de uma escola possa ter tido ao longo da sua formação, posto que muitas Universidades ainda não possuem nas suas grades curriculares disciplinas como, por exemplo, Antiguidade Oriental, e História Asiática. Por isso, não raro, a presença desses conteúdos nos livros didáticos para muitos professores é algo mirabolante, desprovido de sentido.
Como uma consequência desse desprovimento de sentido, muitas vezes esse conteúdo passa a ser abordado como uma maneira de conhecer o ‘outro’. Tal método é válido, contudo, se o professor não detiver de um conhecimento pra além do que consta no livro didático, corre-se o risco do conteúdo presente nessas obras virarem uma mera ‘apresentação do outro’, por conseguinte, muitos aspectos presentes dessa civilização em nossa sociedade que poderiam ser utilizados para instigar um conhecimento a partir de algo que está presente no dia-a-dia do aluno são inseridos quase que automaticamente no perigoso quadro das ‘curiosidades’, em que muitos estereótipos em vez de serem desconstruídos, acabam sendo fortalecidos.
É importante ressaltar como a China é apresentada nos livros didáticos; com exceção de duas coleções, nas demais a presença chinesa aparece na Antiguidade e só retorna quando o assunto estudado é o imperialismo, ou seja, durante esse longo tempo que separa um evento do outro, para as nossas crianças a China simplesmente não existe! Esse silêncio, como dissemos, deriva não apenas da inconsciência sobre a necessidade de ensinar a China, mas mesmo, do desconhecimento sobre o que se deveria ensinar. A China é tratada de forma estereotipada, monolítica e imóvel – algo absolutamente distante de sua realidade.
Só o fato de boa parte da população mundial se concentrar na Ásia, já se faz um bom motivo para estudar essas civilizações, notadamente aqui, a Chinesa. Além do que, experimente pegar qualquer objeto que esteja próximo a sua mão, em seguida verifique a sua procedência; nunca se questionou quando a presença chinesa se iniciou? E como?  Desde o papel a bússola ou a pólvora, até nossos tênis, celulares e roupas, estamos imersos em elementos da civilização chinesa. Que tipo de historiadores pretendemos ser se deixamos de lado essa contribuição fundamental para a história?
Mas se ainda assim, estudar China nas nossas universidades e escolas faz-se algo sem sentido, ficam as indagações: Estamos aprendendo e ensinando uma história com múltiplos olhares que de fato instiga uma consciência histórica? Ou, estamos apenas repetindo a mesma história utilizando de ‘novas’ abordagens?

Breves conclusões
Essa breve pesquisa sobre os livros didáticos de história demonstrou que apesar do olhar eurocêntrico ainda dominar a maior parte dos personagens e abordagens presentes nos conteúdos históricos do Ensino Fundamental, tivemos alguns avanços, a prova disso, é a existência de um capítulo sobre China Antiga em boa parte das coleções presentes no Guia, como os dados nos revelaram. Isso pode parecer muito pouco, mas para livros que até pouco tempo atrás detinham apenas cinco parágrafos sobre a temática, essa é uma conquista e tanto.
Contudo, nos demais conteúdos detido nos livros didáticos, com raras exceções, a China aparece na forma de um figurante, e dificilmente iremos encontrar uma abordagem para além das que constam hoje nos conteúdos dessas coleções, posto que o livro didático, tanto como um instrumento de ensino, é também uma mercadoria. Se a academia como um todo, assim como os professores, não vem sentido em ensinar China, por que as editoras e escritores ampliariam o debate sobre China e outras civilizações orientais?
O problema, que ao negar o Oriente, a China, além de deixar os estereótipos perante essas civilizações ganharem proporções imagináveis, concomitantemente, acabamos por negar o nosso multiculturalismo, a nossa história, já que desde o tempo colonial podemos encontrar vestígios dessas civilizações orientais em nossa sociedade. Logo, ter um ensino universitário, e consequentemente um ensino básico que dê conta de abordar essa diversidade, é algo necessário. Infelizmente, para muitos essa necessidade não existe, outros ainda veem como uma pretensão audaciosa, um sonho impossível de se concretizar devido às fortes amarras eurocêntricas que nosso ensino de História se prende – e será?
Para mudar, esse cenário, mais uma vez precisamos apostar numa educação guiada pelos ideais mais nobres de união, diversidade e humanidade. Dizia o poeta: “Sonho que se sonha só é só um sonho que se sonha só. Mas sonho que se sonha junto é realidade” (Raul Seixa, Prelúdio).

Referências Bibliográficas   
ABRANTES, Dalva de Oliveira. Chinoiserie no barroco mineiro. São Paulo: Escola de Comunicação e Artes da Usp, 1982. Dissertação.
FERRO, Marc. A Manipulação da História no Ensino e nos Meios de Comunicação. Tradução de Wladimir Araujo. São Paulo: IBRASA. 1983.
FREYRE, Gilberto. China Tropical. Brasília: UNB, 2003.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1977.
GONÇALVES, A.T.M. Os Conteúdos de História Antiga nos Livros Didáticos Brasileiros. Revista Hélade. Rio de Janeiro, Número Especial, 2001.

LIMA, S. C. F. de. O Livro Didático de História: Instrumento de Trabalho ou Autoridade “Científica”?. História e Perspectivas. Uberlândia, 18/19, 1998.


12 comentários:

  1. Com base em suas pesquisas, o que você acha, num contexto geral que o estudo da China traria de beneficio aos discentes do ensino médio atualmente?

    Ana Raquel Venetzei

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Ana!

      Traria muitos benefícios! Só pra começar, esses discentes teriam uma formação muito mais humanista e crítica. Além de possibilitar aos mesmos, um conhecimento mais abrangente sobre a constituição da sua própria cultura, já que a presença chinesa em território nacional pode ser verificada desde o período colonial até os dias atuais. Outros aspectos sobre a importância, assim como os benefícios de se estudar as culturas orientais, podem ser verificados no texto do professor André Bueno: http://simpohis2017.blogspot.com.br/p/andre-bueno.html

      Muito obrigada pela sua participação!

      Excluir
  2. João Matheus da Silva Cruz3 de abril de 2017 às 16:21

    Esse é texto muito reflexivo, principalmente para mim que esta cursando Licenciatura em História no momento. Pessoalmente, você acha que além de um eurocentrismo presente no ensino brasileiro exista também uma espécie de "americocentrismo" onde tentamos imitar conceitos (mesmo na educação) de países do Norte do nosso continente ?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá João!

      O americocentrismo no ensino brasileiro é mínimo, basta pegar um livro didático em mãos pra perceber que quem domina todas as cenas e personagens é o eurocentrismo. O próprio Guia analisado deixa claro, que ainda há muitos resquícios de uma cronologia e uma explicação de base eurocêntrica no nosso modo de ensinar História. Que o eurocentrismo ainda permanece forte no nosso ensino de História, já não é mais novidade para quase ninguém. Agora, o que fazer com essa informação, é o que faz toda a diferença.

      Muito obrigada pela sua participação!

      Excluir
  3. Kamila, e a índia e o oriente médio, ten informações?
    Rivaldo

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Rivaldo!

      Das 14 coleções que adentraram no Guia do Livro Didático analisado, apenas 8 abordam a Índia em seus conteúdos, são elas: HISTORIAR; PROJETO ARARIBÁ-HISTÓRIA; ESTUDAR HISTÓRIA: DAS ORIGENS DO HOMEM À ERA DIGITAL; PROJETO TELÁRIS; PROJETO APOEMA; HISTÓRIA. DOC; PIATÃ – HISTÓRIA; JORNADAS.HIS-HISTÓRIA. Com exceção da coleção ESTUDAR HISTÓRIA (que trabalha com o tema no livro do 9º ano) todas as demais coleções abordam a Índia no livro do 6º ano. Damos destaque para as obras do PROJETO APOEMA e HISTÓRIA. DOC, posto, que dão um espaço maior a essa temática. Já o Oriente Médio está presente no conteúdo de 6 coleções, são elas: HISTORIAR; PROJETO MOSAICO-HISTÓRIA; PROJETO TELÁRIS-HISTÓRIA; PROJETO APOEMA; HISTÓRIA. DOC; PIATÃ – HISTÓRIA. Cabe ressaltar, que a coleção PROJETO APOEMA é a única que trabalha com o tema nos livros do 6º, 7º e 9º ano, as demais desenvolvem o conteúdo somente no livro do 6º ano ou no do 9º ano.

      Muito obrigada pela sua participação!

      Excluir
  4. Enquanto pesquisadora, como analisa o fato de um professor declarar-se desmotivado pelo fato de seu salário ser baixo?

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá Ivy,

      Particularmente, acredito que nenhum professor se sinta desmotivado exclusivamente por conta do seu salário ser baixo, até porque, toda a sociedade tem consciência que o salário de um professor no Brasil é baixo, então, ao realizar a escolha por cursar uma licenciatura, não se faz pensando no salário, e sim, porque gosta de ensinar ou acredita que pode fazer a diferença, dentre outros motivos. Nesse sentido, a desmotivação do professor acontece devido a uma associação de fatores que poderiam facilmente encher uma página, e necessitamos urgentemente discutir e achar soluções possíveis para cada um deles, pois a procura por cursos de licenciatura já está diminuindo drasticamente, desse jeito, não vai demorar muito para que haja uma falta de professores no mercado de trabalho. E já pensou nos problemas que isso acarretaria?
      Muito obrigada pela sua participação!

      Excluir
  5. Kamila;
    porque os livros dão enfase ao estudo da china antiga, e depois não falam mais dela? não deveriam estudar mais os tempos mais recentes, tipo china de mao-tse-tung?
    John Lennon

    ResponderExcluir
  6. Olá John,

    é no 6º ano do ensino Fundamental que as civilizações antigas são estudadas, logo, sendo a China uma das grandes civilizações antigas, não poderia ficar de fora desse cenário de estudo, por isso, que quase todas as coleções detêm um capítulo dedicado a mesma no livro do 6º ano. Já o fato, da China praticamente desaparecer dos conteúdos didáticos do 7º, 8º e 9º ano, se dá, por conta de uma cronologia e narrativas históricas eurocêntricas. Sobre o aspecto de dar uma ênfase maior para os fatores históricos recentes da China, e passar de maneira rápida e fragmentada pelos períodos anteriores como, por exemplo, a Antiguidade, pode ser bem problemático. Desse modo, o ideal é estudar mais... mas não esse ou aquele, e sim, todos os períodos históricos!
    Muito obrigada pela sua participação!

    ResponderExcluir
  7. Excelente trabalho, foi uma discussão muito interessante.
    Demorou muito tempo pro ensino de africa ser colocado em pauta, a lei 10.639 ampliou bastante o debate da história africana e ajudou a inserir essa perspectiva que é rica, e cheia de passados gloriosos e que eram esquecidos ou detidos com preconceito. Você acha que o próximo passo nessa dinâmica será a inserção da história oriental? Pois dentre os fatores de contribuição, estão o grande números de descendentes que hoje aqui habitam, e sem contar a nova demanda mundial que projeta os povos orientais como as grandes nações do processo de globalização, e estarão cada vez mais presentes nas discussões mundiais. Obrigado.

    John Lennon Lima e Silva

    ResponderExcluir
  8. Olá John Lima,
    muito obrigada! Tenho esperanças que sim! E como seria ótimo, se essa inserção fosse realizada de maneira espontânea, e não, por meio de um decreto de lei. Todavia, o simples fato, de precisarmos justificar quase que a todo o momento, a importância de se estudar não só as civilizações orientais, mas tantas outras (que são praticamente excluídas dos currículos das universidades e consequentemente das escolas) fica perceptível, que ainda temos uma árdua jornada pela frente, até que a inserção da história oriental - nos currículos como um todo - se concretize em nosso país.
    Grata pela sua participação.

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.