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José Petrúcio

REFLEXÕES EM TORNO DA HISTÓRIA ENSINADA: QUESTÕES URGENTES
José Petrúcio de Farias Júnior
Prof. Adj. História UFPI / campus de Picos

Para Fonseca (2004, p.43), um dos caminhos para repensar o ensino de História no Brasil consiste em buscar renovar, cotidianamente, nossas práticas dentro e fora das instituições de ensino. Torna-se indispensável, nesse sentido, admitir que não cabe mais um ensino de História ancorado na leitura e memorização de narrativas históricas atreladas a uma determinada vertente historiográfica ou a um determinado posicionamento político-ideológico.
É preciso nos conscientizarmos de que temos acesso ao passado por meio de uma série de mediações (sujeitos, fontes e temporalidades) que paradoxalmente nos aproxima e nos afasta de nosso objeto de investigação. Nesse sentido, é preciso sempre lembrar (o que cotidianamente tem se esquecido nas salas de aula) que a construção do conhecimento histórico ocorre por meio de fontes; estas, por sua vez, filtram o cotidiano a que se reportam de maneira bastante particular, porquanto elas são construídas a partir de objetivos e intencionalidades de quem a produziu.
Isso nos permite compreender que as fontes históricas não se confundem com o passado; são apenas partes, versões ou representações dele. As marcas de autoria e destinatário de que são constituídas as fontes históricas possibilitam que se reportem ao mundo vivido sob a ótica e os anseios do sujeito que a produziu, tendo em vista as circunstâncias históricas e condições de produção do discurso, o que implica considerar não só as influências culturais que fazem os sujeitos históricos ‘ver’ o mundo de uma maneira peculiar, mas também a prática discursiva que os envolve e no interior da qual o sujeito histórico se posiciona. Podemos dizer que esta é a primeira ‘mediação’ ou ‘filtro’ do passado.
A segunda se estabelece no momento em que o historiador, tendo em vista suas indagações, predileções e questões que o incomodam, apresenta uma proposta de análise documental eivada por indagações que dizem respeito a suas preocupações cotidianas e provavelmente nem sequer foram pensadas pelo sujeito investigado. Queremos dizer com isso que as motivações do historiador e do sujeito investigado em torno do registro do passado podem divergir muito. As indagações que formulamos e projetamos às fontes nos instigam a olhar para o passado sob ângulos particulares, já que resultam dos interesses do historiador. Isso quer dizer que, damos sentido ao passado, na medida em que nos esforçamos para entender as formas de agir e pensar do presente (RÜSEN, 2009).
Os esforços dos historiadores, em última escala, contribuem para compreender como a sociedade contemporânea foi forjada. Em outras palavras, atribuímos sentido ao passado a fim de que possamos nos orientar na contemporaneidade, uma vez que é a alteridade das experiências humanas do passado que nos permite compreender a historicidade do presente (RÜSEN, 2007b).
A terceira mediação está centrada na própria fonte histórica que, em certa medida, afasta-nos do campo de experiências do autor, já que, ao se referir a seu cotidiano por meio da escrita, inevitavelmente se faz uma série de ajustes ou acomodações cognitivas para que as experiências vividas adquiram inteligibilidade. Isso quer dizer que, ao escrever, o autor reelabora o vivido para atender às exigências da produção textual, o que implica seguir normas inerentes ao gênero discursivo eleito. Em outras palavras, parte dos sentimentos e sensações vivenciados se perdem quando se traduz em palavras cenas do cotidiano.
Fica claro que a construção do conhecimento histórico é uma atividade linguística e intertextual elaborada a partir de mediações de diferentes sujeitos históricos sobre o passado, os quais filtram os acontecimentos históricos vivenciados ou pesquisados sob perspectivas particulares. Logo, não acessamos o passado por meio das fontes históricas, mas sim o construímos sob perspectivas e temas que nos incomodam, isso quer dizer que a escrita da histórica resulta de preocupações ou indagações atinentes ao momento da escrita, o que é válido tanto para o sujeito histórico investigado quanto para o historiador que pretende investigá-lo.
Estas considerações ajudam-nos a entender que o estudante, nas aulas de História, não se torna um cidadão crítico, autônomo e criativo, como almejam as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica, apenas reproduzindo versões sobre o passado elaboradas por determinadas correntes historiográficas, por isso é importante conduzir este componente curricular a partir de diálogos intertextuais em que os discentes tenham a liberdade de se posicionar, tendo em vista o caráter flexível e criativo do processo de construção do conhecimento histórico.
Sob essa perspectiva, é mister que o docente desenvolva situações de aprendizagem que tornem os estudantes protagonistas de seu próprio processo de aprendizagem. Esse é o grande desafio, a nosso ver, da Educação Básica. Os sistemas educacionais brasileiros, em geral, sobretudo das escolas públicas, ainda tem caráter marcadamente instrucional. Os docentes preocupam-se muitas vezes em manter a ordem, isto é, disciplinar os corpos tanto no âmbito físico quanto intelectual do que em fomentar a liberdade de criar e pensar.
Para nos desvencilharmos da concepção de ‘ensino instrucionista’ em História, não há uma receita infalível, mas recomendações. O primeiro passado seria mostrar aos alunos os limites e possibilidades quanto à construção do acontecimento histórico, ao refletir sobre as várias mediações que (in)viabilizam nossa relação com experiências humanas de outras temporalidades. Se entendemos que o conhecimento histórico, como todo conhecimento, é provisório, é constantemente refeito, por que esse entendimento demora a chegar à sala de aula?
Uma hipótese talvez esteja relacionada ao ensino de História em muitas universidades brasileiras que infelizmente não perdeu o caráter instrucionista ou conteudista e meramente descritivo em que o docente transfere informações a serem internalizadas pelos alunos. 
Outra hipótese, que pode estar associada à primeira, relaciona-se ao uso do livro didático como ferramenta única de consulta pelo professor. Isso faz com que o professor apenas reproduza uma versão da história, que é imposta aos alunos, em geral, acriticamente. Essa prática de ensino possivelmente se perpetua em razão das próprias condições de trabalho dos docentes na educação básica: excessiva carga horária de trabalho, insuficiente número de aulas de história por semana, ausência de investimentos públicos na formação continuada de professores, entre outros motivos.
Há também outro fator, a nosso ver, preocupante: estamos acostumados a políticas públicas centralizadas e verticais, de tal forma que os conteúdos e os currículos já desabam prontos, acabados aos professores de educação básica.
Esses ‘pacotes educacionais’, ainda que sustentem princípios como flexibilização, cidadania e autonomia, ao contrário do pregam, levam o professor a seguir os conteúdos previamente estabelecidos sob o pretexto de preparar o aluno para o mercado de trabalho e para a cidadania. Reflitamos, ainda que brevemente, sobre o que significa “preparar o aluno para o mercado de trabalho e para a cidadania”. Em primeiro lugar, não há consenso quanto a isso, nem um sentido unívoco. Há muitos significados, pois há diferentes concepções de cidadania e suas relações ou não com o mercado de trabalho.
Podemos, nesse sentido, perguntar-nos se isso significaria o adestramento de mão-de-obra para o mercado de trabalho em que o termo cidadania apenas perpetua desigualdades sociais na medida em que solicita a aceitação da ordem social vigente, no interior da qual os ‘direitos’ geralmente são entendidos como dádivas ou presentes dos governos municipais, estaduais ou federais? Enfim, o que se entende por formação para o mercado de trabalho e para o exercício da cidadania?
Pelo menos sabemos que o exercício da cidadania não ocorre por meio de práticas de ensino assentadas na memorização e na repetição, reminiscências do ensino jesuítico na educação brasileira, que teve sua importância em determinado momento histórico.
Por isso, advertimos para a importância do contato dos alunos com diferentes tipos de fontes históricas (imagens, mapas, documentos escritos, artefatos arqueológicos, documentários) e as diferentes leituras que foram produzidas sobre elas bem como uma reflexão de como tais leituras foram produzidas, ou seja, a partir de quais circunstâncias históricas e quais condições de produção.
Defendemos que essa prática de ensino contribui para que o estudante, diante de um discurso político, por exemplo, considere a intencionalidade da narrativa, as estratégias argumentativas, o direcionamento da seleção das ideias, tendo em vista quem o produziu, o público para quem se dirige e a própria arquitetura do texto.
Além disso, é preciso lembrar que o conhecimento representa a expressão do mundo em que se vive ou se deseja viver, ou seja, sua razão de existir está impregnada de valor e de importância para aquele que o construiu. 
Neste ponto, concordamos com Pedro Demo (1990) para quem o conhecimento dado, pronto e acabado é autoritário, catequético, doutrinário; o conhecimento construído é democrático, cético, crítico. A questão já denunciada por diversas gerações de pedagogos consiste na importância de aproximar os conteúdos escolares das experiências cotidianas de nossos alunos a fim de que o ensino superior e, por extensão, a educação básica promova uma reflexão não só sobre a vida em sociedade, mas também sobre o papel que desempenhamos dentro dela.

Referências bibliográficas
DEMO, Pedro. Educação e Alfabetização Científica. 1. ed. Campinas, SP: Papirus, 2010.
FONSECA, Thaís Nívia de Lima. História e Ensino de História. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
RÜSEN, Jörn. A reconstrução do passado: teoria da História e os princípios da pesquisa histórica. Brasília: UnB, 2007a.
______. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Revista História da Historiografia, UFOP, n. 2, 163-209, 2009.


6 comentários:

  1. A realidade de conteúdos e currículos “(...) que desabam já prontos (...)” ocorre apenas nas escolas públicas? Isso não é comum também nas escolas particulares?
    O material apostilado utilizado nas escolas particulares não são instrumentos auxiliares de reprodução apenas de uma versão da História?

    Outra questão: a preocupação dos pais com o desempenho de seus filhos no vestibular, aliada à sensibilidade da escola (em especial a escola particular) aos humores desses pais, não pode significar um grande obstáculo no sentido da preparação de um alunado mais crítico, mais cidadão?

    GUILHERME CYRINO CARVALHO

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    1. aro Guilherme,

      Suas reflexões manifestam uma leitura atenta do texto, por isso sou grato pelos comentários; muito pertinentes, por sinal. Em geral, nosso olhar volta-se à educação pública, porque nós, docentes de universidade pública, estamos mais comprometidos com os desdobramentos dos sistemas públicos de ensino, mas, sem dúvida, tais observações se estendem às escolas particulares, cujo material didático é encomendado a profissionais especializados.

      O ensino de História, assim como de Filosofia, Sociologia, entre outros, está imerso em uma série de condicionantes que restringem a construção criativa e autônoma de conhecimentos escolares, indispensável à formação de um cidadão crítico. Há uma grande distância entre o discurso (PCNs, por exemplo) e a prática de ensino. Os motivos são muitos, mas em geral penso que isso se deve ao fato de os representantes políticos nunca terem levado a sério a educação no Brasil. Há mais de um século as reivindicações dos docentes são muito semelhantes!

      Espero ter apimentado o debate.

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  2. No novo século, a hiper-especialização e as interconexões dos saberes são oriundos da crescente complexificação do conhecimento humano que fazem do conhecimento histórico um caleidoscópio com infinitas possibilidades de estudo. Ainda segundo o autor “a história, neste início de milênio, divide-se em inúmeras modalidades que fazem do ofício dos historiadores contemporâneos um universo vasto e complexo” (Barros, 2004, p. 08). Destarte, não existem fatos exclusivamente políticos, econômicos, religiosos, sociais ou culturais em um mesmo campo historiográfico, todas possuem interfaces e enfoques para o desnudamento da sociedade em um tom quase babélico de possibilidades. Ainda nestes termos, o historiador Peter Burke para quem a função da história seria de ordenar informações sobre o passado (Burke, 1992) ou como nos propõe Eric Hobsbawm que o historiador deve sempre lembrar o que a sociedade insiste em esquecer, (Hobsbawn, 1995, p. 13) não basta ao historiador registrar apenas o passado, mas refleti-lo, problematizadoramente caucado no presente.
    Destarte, o historiador do século XXI está singrando o “oceano da historiografia que se acha povoado por inúmeras ilhas com sua flora e fauna particular”, (Barros, 2004, p. 08) tendo vez por vez, de ancorar em diversos portos, formando um verdadadeiro caleidoscópio. Neste sentido, como pensar um ensino de história verdadeiramente inovador? POR FAGNO DA SILVA SOARES

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    1. Caro Fagno,

      Grato pelo rico comentário. A meu ver, as aulas de história, tanto na educação básica quanto no ensino superior, devem ser tecidas de maneira colaborativa e interativa (professor e aluno) a partir de fontes históricas. Isso pelo menos é algo do qual não abro mão.

      Tal prática de ensino requer do docente a habilidade de elaborar e gerenciar situações de aprendizagem que permitam aos estudantes conceber a fonte histórica, no limite, a partir de suas estratégias discursivas e os efeitos de sentido bem como marcas de autoria e possíveis destinatários, o que contribui para refletir sobre intencionalidades e objetivos subjacentes ao discurso.

      Um ensino de história, no interior do qual o docente sai de casa com um discurso pronto e acabado não contribui em nada para formação de um cidadão crítico (um clichê dos discursos institucionais voltados às políticas públicas em educação).
      Outro dado importante: estudamos o passado em virtude de nossas próprias inquietações ou motivações político-culturais o que torna a produção do conhecimento histórico um exercício dinâmico, intertextual, criativo e passível de múltiplas atualizações, tendo em vista as circunstâncias históricas em que estamos inseridos. Historicizar nossos posicionamentos é um exercício indispensável nas aulas de História.

      A meu ver, isso não deveria ser chamado de 'inovador', mas, quando refletimos sobre a situação do ensino de história em muitas escolas públicas e particulares, tais reflexões infelizmente podem receber o caráter de 'inovador'.

      Compreender que o fato de ir para sala de aula sem um discurso pronto e acabado a ser transmitido às audiências não desqualifica o docente ainda é um desafio, sobretudo se considerarmos o jogo de vaidades acadêmicas.

      Penso ter contribuído para lançar mais questionamentos a fim de que continuemos o debate.

      No aguardo.

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  3. José Petrúcio, na sua opinião como podemos convencer os alunos de que conhecer História é fundamental para sua formação cidadã?
    Wiliane Maine do Nascimento

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  4. Boa tarde Wiliane

    Penso que o docente precisa estar aberto ao diálogo. Não um diálogo qualquer: é preciso partir de fontes históricas a fim de que os estudantes reconheçam a alteridade das experiências humanas no tempo; compreendam categorias de pensamento ou formas de agir e pensar diferentes da época em que está inserido, mas também reconheça permanências de práticas culturais de outras épocas no presente. Logo, a formação cidadã pressupõe protagonismo estudantil no tocante à compreensão do 'outro' e de si bem como capacidade de argumentação e investigação.

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