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Jeane Melo

A IMPORTÂNCIA DE UMA ABORDAGEM FEMINISTA NOS CURSOS DE LICENCIATURA EM HISTÓRIA: CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Jeane Carla Oliveira de Melo
Prof. Ass. História do IFMA/Campus Alcântara

De início, a seguinte indagação: devemos incluir perspectivas feministas na formação inicial e continuada de professores e professoras de História?
Esse questionamento ganha centralidade à medida que nos situamos no contexto contemporâneo das políticas educacionais marcadas pelo confronto de interesses advindos das demandas de grupos conservadores/cristãos/empresários da educação que integram a classe política brasileira. Nesse ponto, o ensino de História atualmente encontra-se sob ataques. A famigerada Reforma do Ensino Médio instituída por meio de Medida Provisória (MP 746/16) impõe o fim da obrigatoriedade da disciplina História do currículo nesta modalidade de ensino. Assim, a História será “remanejada” para o Itinerário Formativo das Ciências Humanas, restrita em termos de abrangência (reservada apenas para os grupos que optarem por esse Itinerário Formativo) e tempo de ensino (de três anos anteriores, ela será lecionada em apenas dois). Paralelo a isto, temos assistido (passivamente?) a exclusão do termo gênero do Plano Nacional de Educação, que abriu precedentes para que os planos estaduais e municipais também eximissem o referido termo de seus textos normativos. Mencionamos também o Projeto de Lei 7180/14 da Escola Sem Partido (ainda em trâmite), que se revela profundamente inconstitucional por atingir em cheio a liberdade de cátedra pertencente ao ofício de ensinar, ou seja, um golpe na autonomia docente com maiores ressonâncias aos grupos minoritários e acentuadamente excluídos da história como mulheres, negros e negras, população LGBT, indígenas, dentre outros.
Todos esses elementos possuem um inegável impacto na construção de uma história mais democrática das mulheres enquanto sujeitos históricos. Retomando a primeira questão, acerca da presença dos estudos feministas nos cursos de Licenciatura, sabemos que o tema é candente e provoca inúmeros questionamentos. Nesse curto texto tentarei esboçar, de modo preliminar, algumas inquietações sobre a importância política de abarcarmos não somente mulheres como sujeitos históricos, mas de construirmos uma história (em termos de ensino e pesquisa) não-patriarcal, comprometida, conscientemente não-neutra e militante nos espaços tanto acadêmicos quanto escolares.
A historiografia, tomada aqui como um amplo sistema de pensamento e narrativas históricas no tempo, (sobretudo no que se refere aos livros didáticos), mesmo já bastante repensada e “desnaturalizada” (CERTEAU, 2002), ainda traz perspectivas de uma escritura histórica pautada no ponto de vista do sujeito universal masculino, branco, europeu e da elite. O contraponto disto, isto é, a chamada “história vista de baixo” (SHARPE, 1992) tem se revelado comumente um desafio para a pesquisa, sobretudo no diálogo com a história ensinada. Desta forma, temos o duplo desafio de ensinar história comprometida com a cidadania e a criticidade (termos estes que devem ser problematizados), sem perder de vista os procedimentos da pesquisa histórica, ou seja, o rigor científico e analítico com métodos, técnicas e fontes.
Todavia, pensar o lugar da mulher na história exige fazer importantes deslocamentos. Requer desafiar tradições historiográficas e desnaturalizar visões canônicas bastante arraigadas em nossa cultura acadêmica, dominada por relações de poder, discursos e práticas masculinas. O primeiro deles é submeter à reflexão as possibilidades do fazer histórico com esses sujeitos. Sobre isto, Michelle Perrot (2005) questionava se existiria uma maneira feminina de fazer/escrever a história diferente da masculina e se existiria uma memória especificamente feminina. Entre o sim e o não, Perrot (2005) destacava por meio das diferenças culturais, modos próprios de funcionamento e registro da memória feminina, o que poderia causar implicações específicas nas formas com as quais mulheres abordavam o passado. Considerações importantes à medida que várias historiadoras em diálogo com o Movimento Feminista da década 1970,
buscaram introduzir as experiências femininas nos relatos históricos, seja para perceber a gênese e a evolução da dominação masculina e expressar os pontos de autonomia feminina, seja para suprir uma lacuna incômoda que a ausência das mulheres deixava na narrativa histórica (LUCENA, 2008, p. 01).
Percebida como “excluída” da história, Perrot inaugurou o campo de investigações conhecido como História das Mulheres, domínio que dialogou com a antropologia, a sociologia e a psicanálise e legitimou a validade dos estudos históricos tendo a mulher como principal categoria de análise.  Deste modo, Rago (1998) pontua que o estudo sobre História das Mulheres despertou incômodos no meio acadêmico, sentido por alguns historiadores como Roger Chartier, que questionava uma possível “fragilidade” teórica e metodológica do campo ainda em fundação. Bem, se é lícito supor que as mulheres constituem a metade da população mundial, por que nós ainda permanecemos ainda em posição subalterna nas pesquisas históricas produzidas? Se o silenciamento/apagamento de mulheres não é suficiente para incomodar os historiadores, então percebemos que, de fato, não existe neutralidade na pesquisa científica e que possuímos subjetividades e posicionamentos políticos dos mais variados.
Em virtude disto, Rago (1998) chama atenção para a importância da produção de uma Epistemologia Feminista, capaz de criticar a tradição científica impregnada por valores masculinos e que possa elaborar um contradiscurso fundado na busca de uma nova linguagem que dê conta das experiências históricas diferenciadas de homens e mulheres, uma vez que as sociedades impõem aos sexos modos distintos de socialização. Em outros termos, a historiadora, ao denunciar o caráter ideológico, racista e sexista do conhecimento, apela em favor de um novo modelo de ciência feminista constituída como um saber alternativo com um conteúdo potencialmente emancipador. Na prática, torna-se necessário romper dicotomias e esquemas de análise que hierarquizem o público sobre o privado, o masculino sobre o feminino, o âmbito político sobre o âmbito doméstico. Entusiasmada com a fecundidade desse terreno epistemológico e político, Rago (1998, p.17) assinala que
As possibilidades abertas para os estudos históricos pelas teorias feministas são inúmeras e profundamente instigantes: da desconstrução dos temas e interpretações masculinos às novas propostas de se falar femininamente das experiências do cotidiano, da micro-história, dos detalhes, do mundo privado, rompendo com as antigas oposições binárias e de dentro, buscando respaldo na Antropologia e na Psicanálise, incorporando a dimensão subjetiva do narrador.
No campo do ensino de História, também se articulam pesquisas que denunciam a arbitrariedade e a particularidade do conhecimento histórico, sobretudo nas narrativas veiculadas em livros didáticos (BITTERNCOURT, 2008). Nestes impressos, a despeito do diálogo com novas formas de se fazer/pensar a história e com os critérios postos pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), pesquisadoras como Mistura & Caimi (2015) apontam que as mulheres estão representadas de modo ainda muito tímido nos LD´s de História. Elas surgem, portanto, ou como um silêncio ou como um sujeito coadjuvante, mas quase nunca atuando como protagonista da trama histórica. A referência da ação histórica propriamente dita e seu desenrolar permanecem sendo essencialmente masculinos; entretanto, isso não tem sido suficientemente problematizado de modo que seja possível perceber as fissuras ideológicas dessas narrativas. Nesses termos, para os e as docentes é particularmente árduo construir uma história mais aberta, quando o próprio currículo/livro didático e seu discurso autorizado para ensinar, reforçam estereótipos de gênero discriminatórios e põem a ação feminina em segundo plano.
Para concluir, aponto alguns desafios relacionados a pesquisa e ao ensino de História a partir de uma perspectiva feminista. Urge problematizar a diversidade abrangida pelo termo mulher, forjada em classe, raça, etnia e gênero para não tomarmos também a mulher como um sujeito universal, homogeneizando conflitos e contradições. Carecemos de mais estudos que investiguem a condição de mulheres professoras e de como as docentes vêm se relacionando com os saberes históricos lecionados, uma vez que esse próprio saber está eivado de silêncios e exclusões acerca da atuação das mulheres na história (MELO, 2012). De uma maior aproximação analítica entre a historiografia com a agenda contemporânea dos movimentos sociais de mulheres, que são múltiplos e vêm sendo fomentados/reforçados pelas redes sociais. Destacamos a importância de fortalecer ações pedagógicas promotoras de uma sensibilização/reflexão no público escolar, capaz de produzir tensões e resistências no campo educativo atualmente atravessado por práticas conservadoras e discursos fundamentalistas/fascistas. O desafio, portanto, está em curso.

Referências bibliográficas
BITTENCOURT, Circe. Livro didático e saber escolar (1810-1910). Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
CERTEAU, Michel de. A escrita da História. RJ: Forense Universitária, 2002.
LUCENA, Paola. Rompendo silêncios e descobrindo as mulheres: uma análise da obra de Michelle Perrot no contexto da história das mulheres. In: Caderno de Resumos & Anais do 2ª Seminário Nacional de História da Historiografia. Ouro Preto, EDUFOP, 2008.
MELO, Jeane C. O. de. Lembranças de mulheres professoras: memórias, histórias de vida e ensino de História nas séries iniciais. Dissertação [Mestrado em Cultura e Sociedade]. Universidade Federal do Maranhão: São Luís, 2012.
MISTURA, Letícia & CAIMI. Flávia. O (não) lugar da mulher no livro didático de história: um estudo longitudinal sobre relações de gênero e livros escolares (1910-2010). In: Aedos, Porto Alegre, v. 7, n. 16, Julho 2015.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: EDUSC, 2005.
RAGO, Margareth. Epistemologia Feminista, Gênero e História. In: PEDRO, Joana & GROSSI, Miriam (orgs.) - Masculino, Feminino, Plural. Florianópolis:  Mulheres,1998.
SHARPE, Jim. A história vista de baixo. In: BURKE, Peter. (Org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.


12 comentários:

  1. Jeane! Suas reflexões são realmente muito importantes! Acredito que esta seja uma semente lançada que já produz frutos. Porém, entendo que a discussão sobre e a partir de uma historiografia que traga a presença e a atuação das mulheres, pela minha experiência de pós-graduação, ainda não é consciente na própria universidade. Como percebe esta questão em seu meio de trabalho?

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  2. Obrigada pelas considerações. Concordo com a sua colocação: "a presença e a atuação das mulheres, pela minha experiência de pós-graduação, ainda não é consciente na própria universidade".Isso significa dizer que nossos pares, sobretudos os pesquisadores e professores homens não costumam fazer uma autocrítica mais profunda em relação aos lugares de poder que ocupam e muito menos desnaturalizar a voz autorizada da nossa historiografia que, como é sabido, é masculina. Penso que pesquisas que tematizem a mulher como sujeito histórico são marcadamente políticas e provocam deslocamentos por vezes incômodos dentro das próprias relações de poder do conhecimento. Um exemplo? O modo como a História das Mulheres é quase sempre posto como um apêndice, mero domínio da história como outros campos. Ora, estamos falando da METADE DA POPULAÇÃO mundial. Nossa história não é apêndice, não é mais uma gaveta fragmentada da ciência histórica. Nesse sentido, penso que podemos causar fissuras e incômodos propositais para que esses sujeitos revejam o seu lugar. Já que a história sempre é produzida em função do presente e permeada também por subjetividades, resta-nos denunciar as posturas machistas (com ares de douto conhecimento) de nossos pares ao reproduzirem um olhar permeado de relações assimétricas de poder. Se a história se arroga como uma ciência democrática, então necessita também ser narrada a partir do femninino. Do contrário, será uma história masculina, patriarcal e profundamente excludente e parcial. O desafio é imenso e acredito termos mais interrogações e inquietações que respostas acabadas. Obrigada!

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  3. Obrigado pela resposta! Concordo com suas colocações! Acho que é fundamental e essencial, tornar emergentes os estranhamentos e desnaturalizações relacionados às formas de abordagens e vozes da historiografia que ainda marginalizam estas questões!

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. É possível efetivar uma abordagem feminista, direcionada às mulheres, em meio ao esforço que algumas correntes de pensamento de caráter liberal tem alcançado no meio acadêmico e até mesmo entre docentes?

    Márcio dos Santos Rodrigues

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    1. Dentro da academia, por vezes os maiores obstáculos partem de premissas equivocadas de muitas correntes teóricas sobre o que significa o feminismo. Não acredito que exista muito espaço pras mulheres dentro do capitalismo e teorias de gênero liberais que reificam/reformam/romantizam a dominação entre os sexos têm sido muito úteis para a manutenção do patriarcado nos lugares em que ele deveria ser enormemente debatido e combatido. Vejo nessa seara que um dos caminhos possíveis é o esforço coletivo de mulheres em identificar e lutar contra o machismo nos espaços de poder e conhecimentos. Nesse sentido, percebo o campo de estudos da História das Mulheres uma ferramento poderosa pra gritarmos que somos sujeitos da história e não uma curiosidade/artefato da História Cultural sem poder político para alterar o processo histórico.

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  6. Que belo texto Jeane, toca realmente na ferida, o que eu mais vejo, no entanto, e mais me deixa triste, é que muitas mulheres criadas pelo patriarcalismo opressor acabam se tornando machistas, tendo uma ideia totalmente distorcida do que realmente é o feminismo. Agora o nosso problema é, como fazer com que haja este ensino sobre o feminismo? Qual caminho tomar para que a compreensão do que é, de verdade, se espalhe? Esta abordagem ocorreria simultaneamente em todas as disciplinas ou uma disciplina específica seria criada para tal?
    Naiara Cristiane Rohling

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    1. Naiara, obrigada pela sua pergunta. Como o patriarcado é estrutural e o machismo a sua sustentação ideológica, assistimos com tristeza mulheres reproduzindo a lógica em seus discursos e práticas. Sei que se trata de uma questão complexa e que deve ser problematizada levando em consideração aspectos como etnia, raça e classe. O feminismo hoje, com a polarização ideológica que o país vem sofrendo, se tornou um termo "maldito", o que indica a reificação das práticas machistas. Em relação a reflexão feminista no espaço escolar, penso que todas as iniciativas são bem vindas em variadas disciplinas para se discutir o problema do gênero. Contudo, o saber histórico é um instrumento importante para produzirmos um contraponto e um incômodo em relação a voz autorizada - que é masculina. Obrigada.
      Jeane Carla Oliveira de Melo

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  7. Olá, boa noite, minha pergunta é: Qual é o efeito sobre as práticas estabelecidas da história de se olhar os acontecimentos e as ações pelo lado de outros sujeitos,as mulheres, por exemplo?
    Vanessa Nascimento Martins Sales.

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    1. Vanessa, obrigada pela indagação. Acredito que o efeito de se deslocar a história para uma narrativa centradas em mulheres e escrita por mulheres é justamente esse: construir perspectivas mais democráticas do conhecimento e dar vozes a sujeitos excluídos. Mesmo com muitas limitações, acredito que já demos importantes passos no sentido de desnaturalizar a "voz sagrada" masculina das narrativas historiográficas. Muito obrigada
      Jeane Carla Oliveira de Melo

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  8. O termo "gênero" tem sido, de certo modo, criminalizado e por isso retirado dos textos educacionais que tem como público alvo a educação básica. Então, como poderemos tornar nosso conhecimento sobre o feminismo aplicável em sala de aula, quando vemos discursos que acusam professores de praticarem doutrinação nas escolas? Aline Kelly F. de Souza

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  9. O termo "gênero" tem sido, de certo modo, criminalizado e por isso retirado dos textos educacionais que tem como público alvo a educação básica. Então, como poderemos tornar nosso conhecimento sobre o feminismo aplicável em sala de aula, quando vemos discursos que acusam professores de praticarem doutrinação nas escolas?

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