Páginas

Jean Bonatto

REVISITANDO NUREMBERG ATRAVÉS DA ANÁLISE DO DISCURSO: A IMPORTÂNCIA DAS FONTES NA CONSTRUÇÃO DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA
Jean Marcos Bonatto
UNESPAR/União da Vitória

As fontes históricas abrem um leque considerável de possibilidades para as abordagens dos mais diversificados temas em sala de aula, elas fazem com que os estudos sobre o passado supram os problemas e as demandas do presente, elas privilegiam também a transversalidade e as múltiplas formas de estudo, e deixam de lado o caráter reducionista de ensino de História. A palavra seja ela escrita ou falada pode ser um caminho valioso para a investigação histórica, principalmente quando tais discursos envolvam disputas políticas, manifestações culturais, ou a institucionalização do poder pelo qual os indivíduos que produzem tal discurso estejam envoltos. O documento histórico é nas palavras de um dos expoentes da História Jacques Le Goff nada mais que o resultado de uma montagem, consciente ou inconsciente da história, da época, da sociedade que o produziram. (LE GOFF, 2003, p. 547)
Vivemos tempos em que o “fazer histórico”, e não obstante o Ensino de História, não trabalha mais como se fazia ainda no século passado, com as convicções políticas para “separar o joio do trigo”, para identificar os vilões e os mocinhos. O denso estudo das estruturas de poder e dos discursos fazem parte hoje, da complementação da pesquisa histórica. O Tribunal de Nuremberg por sua vez, teve toda a sua atenção voltada para o discurso produzido pelos réus, o Tribunal serviu – mesmo que de forma forçosa – como uma maneira de trazer a tona a estruturação do poder e o exercício da barbárie nazista. Boa parte dos testemunhos dados ao Tribunal pelos réus ficaram apenas na obviedade, porém algumas coisas que ficaram subentendidas pelos discurso podem revelar certos aspectos da cultura da política e dos anseios nazistas pelo poder. Este texto pretende fazer um breve apanhado de possibilidades de abordagens de ensino com base na análise do discurso nos interrogatórios do Tribunal de Nuremberg.
Antes de tudo devemos deixar claro aos estudantes no que consiste o discurso, qual a abordagem analítica que se pode fazer sobre ele, e com o que a análise do discurso pode contribuir para a aprendizagem histórica, para a cognição dos fatos e para a formação intelectual do estudante. Nesse sentido, a análise do discurso através da fonte histórica pode ser usada em sala de aula para preencher as lacunas que porventura a bibliografia venha a deixar. Deve-se ressaltar com cuidado que aquilo que se apresenta ao aluno pode não ser fiel à realidade histórica, o discurso é produzido por um indivíduo, com desejos, anseios políticos, e pode ser moldado e propagado da forma a subverter a exatidão dos fatos, para que então a aprendizagem seja isenta de juízos de valor. Ainda que, para isso, o professor deve antes de tudo fazer com que o aluno reconheça o discursista e saiba qual o meio político e ideológico que o cerca. Michel Foucault alerta que todo discurso é controlado conforme o meio, e definido socialmente conforme as instituições de poder:
suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo, controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p.8)
Todavia o discurso, no tocante a aprendizagem histórica, deve produzir uma inquietação, uma vontade pelo “querer saber mais” uma excitação na qual nem mesmo a bibliografia sobre o assunto produza, e é dessa inquietação na qual será produzida a aprendizagem, de acordo com Foucault uma inquietação no sentido de:
[...] sentir sob essa atividade, todavia cotidiana e cinzenta, poderes e perigos que mal se imagina; inquietação de supor lutas, vitórias, ferimentos, dominações, servidões, através de tantas palavras cujo uso há tanto tempo reduziu as asperidades. (FOUCAULT, 1996 p. 8)
Nesse sentido, o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg (1946) acabou por revelar projetos engendrados pelos nazistas, que podem ser explorados pelo professor como formas de abordagens comparativas do contexto sócio-político, surgindo assim novos problemas e objetos de estudo.  Um exemplo de abordagem que possa surtir efeito no processo de ensino e aprendizagem é estudar cada indivíduo conforme sua posição na hierarquia e obviamente seu discurso produzido. Para isso as fontes sobre o Tribunal de Nuremberg possibilitam o aluno conhecer, por exemplo, o projeto de perseguição e represália aos judeus revelados nos depoimentos de Julius Streicher:
Mesmo antes de 1933, durante o período chamado de luta, quando ainda tínhamos o outro governo, afirmei publicamente durante uma reunião que era uma desgraça que houvesse colocado na Cidade Velha uma monstruosidade tão oriental de um edifício. Após a tomada do poder, eu disse ao prefeito que a sinagoga deveria ser destruída, e ao mesmo tempo o planetário. (STREICHER, 1946)
[...] a ordem foi então dada em Novembro daquele ano para atear fogo às sinagogas, que não foi culpa minha. Então eu dei a ordem, após a tomada do poder para que cada sinagoga na minha cidade fosse derrubada. (STREICHER, 1946)
E ainda, os projetos de trabalho escravo nos campos de concentração revelados nos depoimentos de Fritz Sauckel:
As condições de vida nos campos dependiam das circunstancias da guerra e, em contraste com o tempo de paz, estavam sujeitas às mesmas limitações que se aplicavam a população alemã. (SAUCKEL, 1946)
A propaganda do partido nazista e o projeto de conspiração através dos depoimentos de Hans Fritzsche:
DR. FRITZ (interrogador): Seus superiores exigiram que você marcasse sua propaganda com o selo do antagonismo ou para estimular o ódio?
FRITZSCHE (interrogado): Sim, isso acontecia com frequência, mas não era exigido que o antagonismo ou o ódio fosse agitado contra os povos. Isso foi expressamente proibido porque queríamos conquistar esses povos para o nosso lado, mas repetidamente eu fui solicitado a despertar o ódio contra os indivíduos e contra os sistemas (FRITZSCHE, 1946)
No entanto, o discurso é mutável conforme a situação em que se encontra o indivíduo, isso pode ser a chave para uma boa análise dos documentos históricos, instigar o aluno a procurar discrepâncias nos discursos dos indivíduos pode contribuir para a aprendizagem, de acordo com Foucault “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder.” (FOUCAULT, 1996, p. 10) Exemplificando a partir das fontes, no momento em que os réus poderiam fazer seu apelo ao Tribunal seus discursos mudaram totalmente daquilo que podia se ver durante todo o julgamento:
Mas a desgraça reside justamente no fato de não ter defendido todas essas doutrinas que guiam secretamente as ações de Hitler e um pequeno círculo que, à luz do testemunho das testemunhas Hoess, Reinecke e Morgen, entre outros, é agora lentamente emergindo da neblina em que estava escondido até agora. (FRITZSCHE, 1946)
Fui abalado até as profundezas da minha alma pelas atrocidades reveladas neste julgamento. (SAUCKEL, 1946)
O Hitler deste julgamento eu não poderia reconhecer. (SAUCKEL, 1946)
Eu quase nunca tive contato social com os ocupantes dos altos cargos do Reich. (SAUCKEL, 1946)
Nesta última palavra, garanto solenemente que fiquei surpreso com todos os acontecimentos políticos estrangeiros e com o início de todas as ações militares. (SAUCKEL, 1946)
Podemos analisar a partir disso que a estratégia dos indivíduos, através do discurso elaborado, foi fazer com que o peso da justiça fosse aliviado colocando a culpa no Alto Comando, ele sabiam do poder da palavra por era por meio dela que se articulou seu próprio partido, e sabiam também que dependendo de sua perspicácia para pronuncia-las elas surtiriam um efeito totalmente favorável para eles.
Mas afinal, em que isso contribui para a construção da aprendizagem histórica do aluno e para o ensino de História de um modo geral? Podemos dizer que a análise dos discursos seja em fontes escritas ou fontes orais aproximam ainda mais o estudante do contexto histórico no qual ele está estudando, e ainda fazem refletir sobre o próprio meio em que vive, a sociedade, a política, a cultura e é claro os discursos produzidos em sua época. O discurso contribui, sobretudo, para desfazer certo afastamento de interesse que o jovem tem da forma de ensino mais pautada na bibliografia. Desse modo podemos considerar que o uso do documento histórico em sala de aula é imprescindível, pois, além de facilitar o processo de aprendizagem do aluno, revela ao professor inúmeras formas de como trabalhar com temas que por vezes podem ser maçantes quando pautados apenas nas bibliografias.

Referências
BLOCH, Marc L. B. A observação histórica. In: ______. Apologia da História, ou, o ofício de historiador. prefácio, Jacques Le Goff; apresentação a edição brasileira, Lilia Moritz Schwarcz; trad. André Telles. – Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
FRITZSCHE, Hans; STREICHER; Julius; SAUCKEL; Fritz. Depoimentos prestados ao Tribunal de Nuremberg. Yale University, The Avalon Project Documents in Law, History and Diplomacy. The Blue Set vol. 11 ao 22. Acesso em: Avalon .law.yale.edu em 01 mar. 2007.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 14ª ed. – São Paulo: Edições Loyola, 1996.

Um comentário:

  1. Caro professor, como utilizar outras fontes sobre o Julgamento de Nuremberg, já que ainda há uma certa delicadeza sobre o assunto holocausto? Como o uso de livros, filmes, documentos, imagens e etc? E como descreditar as teorias da conspiração sobre a inexistência do holocausto?
    Kalil C. Casseb

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.