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Ivanize Santana

DO ANONIMATO À NOTABILIDADE: A MULHER AFRODESCENDENTE NO ENSINO BRASILEIRO
Ivanize Santana Sousa Nascimento
Pós-Graduada em História da Cultura Afro Brasileira

Quem hoje tem trinta, quarenta anos de idade bem deve lembrar-se dos métodos de ensino nas aulas de História: a memorização dos fatos e a argüição oral daquilo que era lecionado pelo detentor do saber: o professor. Material didático? Formas de avaliação? Coisa muito difícil de ver, porque os materiais eram escassos, havia poucos livros didáticos com atividades-questionários e a fala do professor estava acima de tudo. Em suma, o ensino da História resumia-se na repetição de lições dadas sem contestação. O Brasil, assim, copiou as abordagens europeias, principalmente o modelo francês, a História Universal. Apesar de usar nas entrelinhas a História Sagrada, facultar as aulas da História nacional, contudo, elevar os “feitos heróicos” de quem construiu a nação brasileira. E, apesar da República ter sido proclamada no final do século XIX(1889), o foco de ensino era o continente europeu. No século XX, o que aconteceu com a historiografia do recém-país? Nada de novidade, até porque o governo da República estava com o pensamento voltado para os lucros da “política do café com leite”. E mesmo que alguns grupos de pensadores (historiadores) como os anarquistas, quisessem propor a criação de escolas públicas, com currículos e métodos apropriados, suas ideias eram descartadas. Inegavelmente, vale salientar que a Semana de Arte Moderna (1929) em São Paulo, foi o apogeu de grandiosas discussões culturais e artísticas que acabaram inspirando o mundo político, econômico, social e educacional. O que as obras “Operários e Abaporu” de Tarsila do Amaral, representaram? Decerto, o cotidiano brasileiro composto de suas matrizes formadas por índios, negros e povos vindos de outros continentes. Eis aí o que estava em questão: a busca pela identidade nacional, a revelação da diversidade étnico-racial e a colaboração destes no crescimento econômico do Brasil industrial e urbano que despontava nos anos 30. Por isso, conforme os PCNS (2001, p.24): “Nos programas e livros didáticos, a História ensinada incorporou a tese da democracia racial, da ausência de preconceitos raciais e étnicos [...], o povo brasileiro era formado por mestiços, compondo um conjunto harmônico de convivência dentro de uma sociedade multirracial e sem conflito.” Neste momento, o país evoluía e a educação estagnava!? Contava mesmo era recitar, memorizar e comemorar as festas cívicas na escola.
Isto posto, fazendo um breve recorte histórico da sociedade brasileira, quantas e quais são as mulheres negras ou afrodescendentes que ajudaram a fazer a História do Brasil até os dias de hoje? Quem são as heroínas comemoradas nas festividades cívicas? Os livros didáticos reportam esse contexto nos temas históricos de grande relevância?Aqui se salientam nomes poucos mencionados ou desconhecidos totalmente, alguns referenciados no guia (Orientações e Ações para a Educação das Relações Étnico-Raciais, 2006, p.245): Francisca da Silva Oliveira, mais conhecida como Chica da Silva, escrava do contratador João Fernandes, o qual lhe alforriou. Como negra, livre, abastada, soube impôs-se aos preconceitos daquele período e desfrutou de muitas atividades reservadas às mulheres “brancas. Antonieta Barros, catarinense, nasceu em 1901. Formou-se em Magistério e tornou-se a primeira deputada estadual negra do país e a primeira deputada mulher de Santa Catarina. Carolina Maria de Jesus nasceu no começo da Primeira Guerra Mundial (1914). Mineira de Sacramento teve uma infância muito pobre, era catadora de lixo, sendo que foi nessa atividade, o seu encontro com uma velha caderneta. Ali, ela passou a registrar momentos de sua vida. Chegou a ser uma das únicas mulheres brasileiras incluídas na Antologia de Escritores Negros, publicada em dicionários mundiais de Nova Iorque e Lisboa. Eugênia Ana dos Santos, cognominada de Mãe Aninha, nasceu em 1869 na cidade de Salvador (BA). Descendente direta de africanos, lutou pela liberdade de culto no Brasil. O presidente Getúlio Vargas, através do Decreto nº 1202, estabeleceu o fim da proibição ao culto afro em 1934. Francisca Edwiges Neves Gonzaga, Chiquinha Gonzaga, filha de pai branco e mãe negra, desde a infância, foi excluída por ser uma “bastarda”e na vida adulta, foi considerada  “devassa” e “irreverente”. Considera-se nessa contemporaneidade, a precursora da MPB, que escolheu para si uma profissão masculina. Além de compositora era regente (primeira maestrina). Na política, lutou como abolicionista pelo término da escravidão ao lado dos companheiros, Antonio Callado e Joaquim Nabuco. Se tratando de combate ao racismo à mulher, Lélia Almeida Gonzalez, nascida em 1935, foi uma mineira de destaque à causa negra na década de 40. Militou em prol da mulher e do negro no Brasil. Incentivou debates sobre o racismo nas universidades do país, ajudou a fundar o Movimento Negro Unificado (MNU), o Instituto de Pesquisas das Culturas Negras (PCN/RJ), o Nzinga Coletivo de Mulheres Negras no Rio de Janeiro e o Olodum na Bahia. A famosa Revolta dos Malês, 1835, foi de “escravos muçulmanos”. Não poderíamos dizer também, de escravas cativas e libertas que deram muito de si pelo fim da escravidão na Bahia,a exemplo de Luísa Mahin?
Seria o correto, porém, não há muito tempo que a historiografia brasileira começou a dar seus pequenos passos para esta realidade de reflexão e crítica. No cerne de duas ditaduras (Vargas e a Militar),viveu-se o nacionalismo carregado de xenofobia e conservadorismo. Ai daquele(a) que contestasse os regimes citados,um professor lecionasse fora do currículo proposto e não mostrasse a grandiosidade dos dirigentes políticos, comparando-os aos “feitos heróicos” de certos vultos a exemplo de Tiradentes e não das negras baianas  Ana Romana e Domingas Maria do Nascimento da Inconfidência Baiana.No ápice do Regime Militar,a História foi recantada e mesclada nos Estudos Sociais,para dar notoriedade ao ufanismo dos presidentes ditadores e ao ensino voltado para o tempo cronológico(linear).Felizmente,são os anos 60,através das lutas universitárias, que vêm trazer uma nova roupagem metodológica à História.Graças aos movimentos revolucionários europeus dessa época,o clima bom veio gestado e concebido dos protestos e manifestos  dos homens e mulheres contra uma sociedade puramente capitalista,exploradora que submetia uma grande massa ao “conformismo sócio-econômico,cultural e educacional”. Moraes Ferreira e Renato Franco (2013,p.61) enfatiza que “Na esteira dos movimentos afirmativos das minorias,a escrita da História começou também a redimensionar o papel das mulheres,crianças,homossexuais  e pobres[...],fazendo emergir uma História vista baixo.”O mesmo ocorreu no Brasil,permitindo que história tradicional,o currículo oculto e formal fosse revisto,os livros reelaborados e as aulas de história incorporassem o currículo invisível,àquele que traz os valores vividos de maneira informal pelo educando e acaba por constituir e colaborar na formação da sua identidade e seu sentimento de pertença a uma etnia e comunidade. Lembrando que “novos temas também podem e devem ser utilizados. Assim, em um mundo em que as mulheres têm cada vez mais atuação na vida social posta em evidência, a apresentação das mulheres e das relações de gênero apresenta interesse evidente. ”(Funari, 2012, p.100). Desse modo, dentre as conquistas dos afrodescendentes, a Lei da História e Cultura Afro-Brasileira (10.639/2003), complementada pela Lei 11.645/2008 que trata da causa negra e indígena, salienta quão é necessário não negar na sala de aula os atos torpes e desumanos vivenciados no Brasil por mais de trezentos anos. Todavia, mostrar a atuação de vários negros e negras de destaque ontem e hoje, situações positivas que “desnaturalizem” o tempo histórico, desconstruam estereótipos, preconceitos, posturas etnocêntricas como a ideologia do branqueamento que nas entrelinhas ainda se abastece da inferioridade e da superioridade da cor e tem plantado nas redes sociais manifestações racistas e excludentes contra muitas mulheres julgadas pela sua aparência e não pela competência e capacidade intelectual, moral e ética. Sérgio Buarque de Holanda, citado por Circe Bittencourt (2012,p.185) bendiz que:
Para estudar o passado de um povo, de uma instituição, de uma classe, não basta aceitar ao pé da letra tudo quanto nos deixou a simples tradição escrita. É preciso fazer falar a multidão imensa dos figurantes mudos que enchem o panorama da história e são muitas vezes mais interessantes e mais importantes do que os outros, os que apenas escrevem a história.”

Considerações Finais
O II Congresso de Pesquisadores Negros que aconteceu em São Paulo (2002), dando continuidade ao I Congresso (2000) ocorrido em Recife, corrobora que “é na resistência dentro e fora das universidades, que o afrodescendente, negro ou afro-brasieliro, tem buscado rever, recriar, ressignificar sua participação na história passada e presente do Brasil. É hora deestar se refletindo para onde caminha o ensino da História? Qual o papel do educador? Que livro didático deve ser adotado? E quem são os “artistas” que continuam a encenar com luta e labuta a história brasileira? Quais as contribuições femininas do mundo afro para a quebra das barreiras entre negros e brancos?

Referências
BARBOSA, L.M de. Assunção. Et al. De preto a afro-descendente: trajetos de pesquisa sobre o negro, cultura negra e relações étnico- raciaisno Brasil São Carlos: EdUFSCar, 2010.
BITTENCOURT, Circe. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas- Identidade nacional e ensino de História do Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012.
______. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003.Diário Oficial, Brasília – DF.
______. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Diário Oficial, Brasília – DF.
______. Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais. Diário Oficial, Brasília – DF: SECAD, 2006.
______.  Parâmetros Curriculares Nacionais: História e Geografia/Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. -3. ed.-Brasília,2001.
FERREIRA, M. de Moraes; FRANCO, R. Aprendendo História: reflexões e ensino. -2. ed.-Rio de Janeiro : Editora FGV,2013.
FUNARI, P. Paulo. História na sala de aula: conceitos, práticas e propostas- A Renovação da História Antiga. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2012.



6 comentários:

  1. Olá, considero sua pesquisa excelente! Parabéns pelo levantamento realizado. Na condição de quem estuda gênero, gostaria de saber sobre algumas referências importantes que terias para sugerir sobre a questão da mulher afro-brasileira. tens alguns autores para sugerir? Abraços, Daniel Gevehr.

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  2. Ótimo texto! Romper com o ensino tradicional que cala personagens tão importantes para nossa história é fundamental. Tens dicas de filmes ou documentários que abordem essa questão e que possam ser trabalhados em sala de aula? Atenciosamente, Helem da Rocha Leal

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  3. Professora Ivanize, tudo bem?

    Antes de mais nada gostaria de parabenizar pela fluidez, competência e destreza dos seus argumentos organizados no referido estudo e pesquisa.

    Gostaria ainda de, aproveitando a oportunidade, destacar o orgulho de ser seu colega de ofício e a felicidade em aprender na sua companhia.

    Professora Ivanize, como mulher negra, militante e inscrita na história, conte-nos sobre suas memórias, relatando-nos qual o lugar da mulher negra em suas relações familiares, na sua formação intelectual, começando pelos anos iniciais do ensino fundamental, passando pelo ensino médio, chegando, enfim, na sua formação docente.

    O estudo acerca da mulher negra esteve presente de que maneira na sua história de vida e profissão?

    Muito obrigado e forte abraço!

    Antonio José

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  4. Professora Ivanize, tudo bem?

    Antes de mais nada gostaria de parabenizar pela fluidez, competência e destreza dos seus argumentos organizados no referido estudo e pesquisa.

    Gostaria ainda de, aproveitando a oportunidade, destacar o orgulho de ser seu colega de ofício e a felicidade em aprender na sua companhia.

    Professora Ivanize, como mulher negra, militante e inscrita na história, conte-nos sobre suas memórias, relatando-nos qual o lugar da mulher negra em suas relações familiares, na sua formação intelectual, começando pelos anos iniciais do ensino fundamental, passando pelo ensino médio, chegando, enfim, na sua formação docente.

    O estudo acerca da mulher negra esteve presente de que maneira na sua história de vida e profissão?

    Muito obrigado e forte abraço!

    Antonio José

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  5. Olá,Daniel e Helem!Que bom ter o meu texto reconhecido como fonte pedagógica,ideológica e filosófica,por certo.Verdadeiramente,eu sou muito apaixonada pela causa e neste ano fiz questão de abordar essa temática já contemplada na minha pós.Pois bem,aí vão dicas de autores que referenciam a causa da mulher negra:Maria Nilza da Silva(Tese do Mestrado de 1999),Conceição Evaristo(Mestre,doutora em literatura afro),Elisa Lucinda(atriz,poetisa,escritora),Míriam Alves(escritora,poetisa,23 anos de vida literária),Sonia Rosa(escritora de livros infanto-juvenis e pedagoga),Mel Adún(afro-baiana),Elizandra Sousa(jornalista e atua no Projeto MJIBA-Jovens mulheres negras em ação),Maria Gal(baiana,escritora e atriz), Antonio José(Mestre em Educação,professor,escritor,meu conterrâneo e comunicador neste simpósio).Quanto aos documentários ou filmes,que tal conhecer o GELEDÉS?(Instituto da mulher negra fundado em 1988);filmes/documentários: De volta pra casa(Adriana Santos e Jorge Moreno);Preto e branco-nem tudo é o que parece(Racismo no Brasil);Raça humana;Ser quilombola(documentário baiano);Sentinelas do tempo:mulheres quilombolas de Sérgio Brito;Vista a minha pele;Alguém falou de racismo?Cidade das mulheres de Lázaro Faria;Mulheres negras:Projeto de mundo de Dayane Rodrigues.Espero ter atendido vocês,fico na torcida que estas nossas sementes chamadas equidade,respeito e dignidade possam germinar nas nossas vidas e dos nossos entes que creem no valor do caráter para tudo fazer e não apenas no valor da cor! Axé!

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  6. Oi,Tony! Que bom você ter apreciado também a minha pesquisa.Eu sabia que ia dar certo,pois,dediquei parte das minhas férias neste estudo aprofundando entender aquilo que ainda me indigna(o preconceito,o racismo...).Na verdade,eu tenho pé na taba e outro no quilombo.Meus dois avós eram descendentes diretos de índios e as minhas avós eram de raízes negras mesmo.As práticas de vida delas,então,hoje me fazem ver que foram negras de valor e os seus vocabulários eram riquíssimos em termos africamos.Eu me deliciava com suas conversas de que as avós delas foram "capturadas pelos dentes de cachorro".A descendência delas também é de muitas negras:mãe,tias,primas,netas,etc.Caminhando com esse papo,foi a minha 5a série que me despertou lá nos movimentos populares,quando na época eu queria ser Maria de Nazaré no desfile cívico e ouvi a diretora(falecida),dizer que eu não poderia ser(Olhe a cor dela!).Não liguei porque ainda era muito menina e,logo me deram outro papel.Assim,fui me conscientizando,nos anos 80(1988) era a Campanha da Fraternidade sobre o negro.Isso fez mudar também meu pensar e ressignificar quem era o negro lá na África,quem foi e é o negro aqui,por que ele veio parar aqui.E colocando a negra em destaque,
    sempre sua imagem foi ofuscada e vista como objeto de prazer dos garanhões.E isso nós não somos.A minha pós acabou trazendo um leque de tanta beleza e desafios do mundo feminino negro que me fez ler,reler,buscar,refletir,escrever e acreditar no potencial que temos desde longas datas,porém,negadas por uma história machista,feita de cima para baixo pelos "heróis brancos".Viu a reportagem das mulheres(negras) que trabalharam para lançar o homem americano na Lua em 1969?Cadê,que isso nunca foi revelado antes?claro que eu falando tudo isso,não estou querendo dizer que o branco é o mal da terra,até porque casei com um de pele clara e pelos anos vividos juntos ele dizia gostar da cor negra.Enfim,amigo,só posso dizer-lhe que,eu vibro quando vejo uma negra subindo no pódio da vida do sucesso e reconhece que merece respeito,dignidade e ser tratada por isso como um MULHERÃO!Um abraço e obrigada por acreditar no poder que nós de cor temos.Pois,o que mancha a sociedade não é a nossa cor,porém,as más ações que desbotam os véus do amor e do cuidado para com o outro.Axé!

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