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Francisca Márcia

ENSINO DE HISTÓRIA E A NOÇÃO DE PATRIMÔNIO CULTURAL CONTEMPORÂNEA
Francisca Márcia Costa de Souza
Mestrado em História do Brasil – UFPI

A força do patrimônio cultural reside justamente no diálogo permanente que mantém com os sujeitos que se identificam com ele. O patrimônio também pressupõe uma ação territorializada, portanto, recortada pela vida, pelas experiências caminhantes de seus praticantes. Pensar dessa forma é contemplar o patrimônio por meio de usos mais qualificados, que por esta razão lhe conferem sentidos e significados diferenciados. Ainda, é uma forma de enraizamento que engendra solidariedade entre os indivíduos ou grupos que compartilham o bem patrimonial e as práticas que os identificam.
No campo do patrimônio cultural é necessário manter a discussão sempre aberta e continua sobre as premissas que orientam a atividade patrimonial, caso contrário elas podem ser banalizadas, desgastadas. Nesse sentido, operamos com a perspectiva que contempla as transformações históricas como pressupostos inerentes a noção de patrimônio cultural contemporâneo. É preciso considerar ainda que a noção de patrimônio cultural contemporânea tem neste trabalho como marco temporal inaugural a década de 1980, especificamente tem como evento inicial a Constituição de 1988 do Brasil, conhecida como Constituição Cidadã.
Para Paulo Marins, a década de redemocratização do Brasil coincidiu com o esforço dos órgãos de preservação federal de ampliar os alvos dos processos de tombamento de bens até então ignorados por elas, “num alargamento perceptivo daquilo que começara a se definir como a diversidade cultural” (2016, p. 12). Em 1986, o houve o tombamento do primeiro terreiro de tradições religiosas afro-brasileiras – o Terreiro da Casa Branca, Ilê Axé Iyá Nassó Oká. Dessa maneira, ainda segundo Paulo Marins, a década de 1980 é marcante porque se amplia o conceito de patrimônio cultural, incorporando o olhar antropológico, bem como houve o ajuste ao que estabelecia a Constituição de 1988.
Nela, podemos refletir sobre algumas mudanças referentes ao patrimônio cultural contemporâneo. É incluído, por exemplo, o patrimônio imaterial. O que pressupõe a valorização dos conhecimentos tradicionais dos povos indígenas, dos quilombolas e das populações tradicionais. Outro aspecto que deve ser considerado é que o patrimônio cultural não é mais exclusivamente definido pela sua monumentalidade ou excepcionalidade, concepção, aliás, presente no Decreto – Lei n. 25/37 (Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional), mas pela referência à identidade e à memória dos diferentes grupos. Neste aspecto, o caráter elitista é rechaçado, pois valoriza a pluralidade cultural do povo brasileiro.
Por acharmos oportuna essa discussão, vamos construir entendimento sobre a noção de patrimônio cultural contemporânea a partir do texto do Ulpiano Meneses (s/a), denominado “O Campo do patrimônio cultural: uma revisão de premissas”. A sua reflexão é útil porque toma o patrimônio cultural contemporâneo a partir do deslocamento do campo do Estado para a sociedade. Para tanto, ele parte da análise de um cartum (desenho humorístico ou caricatural, que satiriza comportamentos, valores e atitudes humanos) publicado em uma revista francesa.
O cartum analisado por Ulpiano Meneses possibilita alargar o entendimento sobre a noção de patrimônio cultural contemporânea. Nesse sentido, era o “estado que instituía o patrimônio, composto apenas de bens tombados. Nesse caso, o tombamento tinha o poder de instituinte do valor cultural” (MENESES, s/a, p. 33), Contudo, não podemos encarar o patrimônio como uma ideia de unidade.
Segundo Ulpiano Meneses, a compreensão do cartum é vigorosa porque lhe possibilitou várias leituras, suscitou muitos problemas, existindo nela uma “extraordinária força” capaz de vencer o tempo, acompanhá-lo e provocas até hoje suas reflexões sobre patrimônio cultural.   Procuramos pesquisar a imagem na internet por meio de vários buscadores, mas não foi possível encontra-la até o momento. Embora, o cartum não esteja impresso no texto, ele consegue vencer esse aparente obstáculo com uma análise vigorosa.
Assim, o cartum trata de uma velhinha, que ele descreve como “encarquilhada”, que se encontra de joelhos diante do altar de uma catedral francesa, seriamente concentrada em sua oração. A sua compenetração de monge contrasta seriamente com a euforia dos turistas orientais e seu guia, que a interrogam com um olhar pontiagudo. Para o guia da expedição, a velhinha perturba a visitação. Resta uma questão: quem “atrapalha” quem? Por que a velhinha em oração atrapalha os turistas? Assim, o texto de Ulpiano Meneses trata de três personagens: a velhinha, os turistas orientais e o guia, enfatizando as relações que eles tecem com o bem cultural.
As diferenças que permeiam esses três personagens são cheias de reflexões que enriquecem a noção de patrimônio cultural contemporânea. Primeiro, a velhinha deve ser moradora do lugar em que está a catedral, pois sua atitude revela uma relação próxima e íntima, o que podemos chamar de “territorializada”. Por este termo entendemos que a catedral faz parte do circuito caminheiro desta senhora, ou seja, é indissociável da vida cotidiana que se desenrola. Esse posicionamento revela-se mais contundente a julgar pelas roupas do dia a dia da “velhinha” e também por não está acompanhada de outra pessoa. Este aspecto revela que é uma prática segura, rotineira e próxima. O conceito de territorialidade é animado pela ideia de “habitar”, cujo entendimento nos remete a condição de manter uma experiência sensível, permanente, duradoura e cotidiana. Além disso, a catedral parecer ser um bom lugar para rezar. Nesse sentido, o bom, o prazeroso, o belo, a beleza também constitui a noção de patrimônio cultural.
Trata-se, portanto, de uma relação de pertencimento – mecanismo nos processos de identidade que nos situa no espaço, assim como a memória nos situa no tempo: são as duas coordenadas que balizam nossa existência. Consequentemente, a relação da velhinha com a catedral não deve ser pontual, de exceção ou que se consuma numa momento privilegiado e depois não mais se repita, ou se repita de forma atenuada ou descontínua. A relação da velhinha é existencial, pressupondo tempos dilatados (morar, moradia são palavras que também explicitam esse conteúdo de extensão temporal do habitar). (MENESES, s/a, p. 27).
Assim, a partir desta primeira personagem, podemos apontar algumas considerações sobre o patrimônio cultural. A compenetração profunda da velhinha em oração mostra que a catedral é um espaço íntimo e cotidiano. Por esta razão, não se trata de uma relação pontual, mas faz parte da própria existência dessa senhora. A vitalidade dele vem destas práticas cotidianas e duradouras. Essa relação mútua de pertencimento atravessa o entendimento acerca da noção de patrimônio cultural. A catedral possui estímulos pela sua antiguidade, pelas imagens e estilo arquitetônicos que aprofunda o sentimento de pertencimento. Em síntese, é a noção de enraizamento, de referência cognitiva, de continuidade, de constância e de pertencimento que atravessa o patrimônio cultural.
De lugar de culto, a catedral tornou-se experiência de fruição dos turistas, em “lugar de representação do lugar de culto”.  Essa mudança qualitativa esvazia as práticas antigas, tornando-as obsoletas. Para o autor que estamos trabalhando, as práticas deles são “desterritorializadas”. Isso pode ser expresso pela maneira como os turistas comportam-se na catedral, de não entrega, de não enfrentamento, falta intimidade. Eles não estão interessados em viver o bem cultural. É uma experiência externa e mediada por informações prontas. Essa vivência ocorre pela mediação de um especialista, cuja informação pronta marca percursos e desejos. É uma experiência distraída e mediada pelas informações do guia.
Portanto, a relação cotidiana tecida entre a catedral e a velhinha, que, por assim dizer, é uma experiência patrimonial qualificada e atravessada por inúmeros sentidos e afetos. Por essa via, é preciso pensar o patrimônio cultural como uma relação orgânica que possibilita as condições de produção da vida concreta, ou seja, as vivências, os afetos, os desejos, as sensibilidades e sentimento de pertencimento, e não uma vivência distraída, pontual e pronta. 
Diante do exposto, o patrimônio cultural não existe fora da história. É preciso evitar a ideia de patrimônio cultural como “essência” de uma época, como aquele que sobreviveu à história. O patrimônio cultural não é um objeto congelado do passado. Nesse sentido, o que vigora atualmente é acepção da mutabilidade do bem preservado, de que ele está inserido na história, ao qual ele se caracteriza pela vida. É inerente ao patrimônio as transformações, ou melhor, o que está em jogo não é materialidade em si do patrimônio, mas diz respeito a preservação da “identidade em transformação”, pois a preservação do bem cultural não está na capacidade dele permanecer como era desde a sua concepção, é na sua capacidade de mudar que está a sua força vital. O patrimônio cultural não é um objeto a-histórico, pelo contrário, ele precisa das transformações históricas, ou seja, é pela interação com os sujeitos, seja por meio da consciência histórica, seja como estímulo a compreensão da vida pessoal desses indivíduos. Preservar é a capacidade do bem patrimonial fazer sentido através do tempo, o patrimônio esta dentro da vida.
Após essas colocações, é preciso reconhecer que a interface entre ensino de história e o patrimônio cultural ocorre a partir do entendimento que a história é vida, é produção de subjetividade, é engajamento político. Neste aspecto, é preciso reconhecer a força do patrimônio cultural, enquanto categoria de pensamento, como instrumento de luta pelo reconhecimento público de grupos e indivíduos. É uma política que organiza o lugar de fala, os interesses e as subjetividades de um grupo por meio da preservação e valorização do bem cultural.  Para tanto, é imprescindível a ligação íntima entre o bem patrimonial e os sujeitos. A existência social e cultural do patrimônio depende dessa conexão.
O reconhecimento da diversidade cultural como inerente a tudo que é humano também constitui a interação entre ensino de história e o patrimônio cultural.  Face ao mundo de incertezas que nos debruçamos, vimos que nele persiste a negação da humanidade do homem, provocando seu esvaziamento. Nesse caso, o patrimônio cultura atua como consciência do lugar que ocupa o sujeito em uma sociedade, sistema de ancoragem que permite que o sujeito sinta-se parte de algo. Desse modo, a interface não ocorre sem o exercício da tolerância, o que antes pressupõe conectar o homem a sua humanidade. Não acontece sem inclusão e ampliação dos direitos sociais, não se concretiza sem a intensificação da qualidade da democracia.

Referências bibliográficas
BITTENCOURT, Circe (org.). O saber histórico na sala de aula. 11. Ed. São Paulo: Contexto, 2010.
CARSALADE, Flávio de Lemos. A preservação do patrimônio como construção cultural. Arquitextos. São Paulo, ano 12, n. 139, dez., p. 1-9, 2011.
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Os limites do patrimônio.Disponível em < http://portal.iphan.gov.br/editais/detalhes/126/selecao-mestrado-profissional-em-preservacao-do-patrimonio-cultural-2017>Acessoem 24-01-17.
MARINS, Paulo César Garcez. Novos territórios, um novo Brasil? Um balanço das políticas patrimoniais federais após a década de 1980. Estudos Históricos. Rio de Janeiro, v. 29, n. 57, p. 9-28, jan./abril, 2016.
MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra. O campo do Patrimônio Cultural: uma revisão de premissa. Disponível em < http://portal.iphan.gov.br/editais/detalhes/126/selecao-mestrado-profissional-em-preservacao-do-patrimonio-cultural-2017>Acessoem 24-01-17.


8 comentários:

  1. Olá Francisca, gostei muito do seu texto e queria dialogar contigo: como pensar ações no ensino de História que possam valorizar o patrimônio do local a partir "do sujeito sentir-se parte deste local ou festividade"? que sugeres neste sentido?

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Olá, Clarice!


      Obrigada pela questão colocada.

      Primeiramente, é preciso questionar o contexto em que o patrimônio cultural emerge como uma preocupação para o ensino de história e se perguntar para que serve o Patrimônio cultural? Segundo, quanto às ações, elas podem partir do ambiente de sala de aula e manter uma relação de continuidade com outros espaços e não somente promovidas pelos educadores de Ciências Humanas. O Patrimônio Cultural em sala de aula é uma metodologia, uma atitude, um posicionamento político... Terceiro, discutir o que entendemos por Patrimônio cultural e sua relação com a memória, a identidade e o tempo. Não faltam referências que tratem dessas relações. Quarto, é preciso fazer um trabalho que envolva escola e a comunidade em torno da escola. O intercâmbio com os fazeres, os saberes e as experiências desses sujeitos podem contribuir com o ensino de história voltado para a valorização do patrimônio cultural, levando em consideração o trabalho de memória desenvolvido por eles. Neste aspecto, basta voltarmos para a velhinha que reza na igreja, conforme o exemplo apontado no texto, ela denuncia em sua afetividade e intimidade a relação que mantém com o espaço de sua devoção. O sentir-se parte não se dá de maneira automática, mas por meio das relações miúdas e cotidianas que mantemos com o bem cultural, como pode ser verificado pela maneira com a velhinha se "comporta" no interior da igreja. Assim, o que quero dizer é que essas ações se dão em torno das memórias dos sujeitos que praticam o patrimônio, que pode ser uma igreja, uma dança, uma festividade, a maneira como se prepara um doce para leiloar em uma festa de santo católico...

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    3. Francisca Márcia Costa de Souza

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  2. Olá Francisca, seu texto é relevante e instigante. Temos um desafio enorme em valorizar o patrimônio cultural, as concepções de pertencimento do sujeito e ao mesmo tempo a cultura da destruição balizados no discurso da modernidade. Sendo assim, como pensar o Ensino de História e as noções de Patrimônio Cultural?

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  3. Este comentário foi removido pelo autor.

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  4. Olá, José.

    Agradeço sua pergunta.

    Creio que ela dialoga com o questionamento feito pela Clarice. Nesse sentido, por favor, veja o "texto-resposta" que encaminhei à Ela.

    Paz e bem.

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