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Eloi Muchalovski

O USO DO JORNAL DE ÉPOCA COMO PRÁTICA NO ENSINO DE HISTÓRIA: O CASO DO CONTESTADO
Eloi Giovane Muchalovski
Mestrando em História UNICENTRO/PR

Desde o início do século XX a pesquisa em história passou por uma sucessiva cadeia de alterações teóricas e metodológicas, especialmente com o advento da Escola dos Annales, movimento intelectual que propôs novos nortes à disciplina, em alternativa a proposições da escola metódica dita positivista.
A partir de então encaminhamentos frutíferos na problematização das fontes se deram. Documentos antes não considerados válidos – por não possuírem uma “verdade” histórica, ou seja, não serem fontes ditas oficiais –, passaram a figurar entre os trabalhos dos historiadores. Destaque para fontes ditas orais, bem como a fotografia e o jornal, este último, apesar de muito questionado quanto sua confiabilidade documental, exigindo em sua análise um necessário cuidado metodológico, mostrou-se consideravelmente dinâmico.
Principalmente a partir da década de 1970, os periódicos impressos, materializaram-se de vez como importante instrumento para o desenvolvimento do conhecimento histórico. Apesar de ainda haver uma certa relutância pela utilização da imprensa como fonte histórica, pois pesquisava-se a história da imprensa, mas não a história por meio da imprensa (LUCA, 2008), o uso deste tipo de documento foi verificado em diversas obras, em especial pela renovação metodológica proposta pela história cultural (BURKE, 2005, p. 7).
Na mesma medida, as teorias educacionais trilharam um caminho bastante símil na introdução de ideias inovadoras que possibilitaram o uso de materiais externos ao padrão apresentado pelo livro didático, especialmente no ensino de história. As sempre relevantes contribuições de Paulo Freire, trouxeram novos ares e inspirações na elaboração de uma proposta de ensino aprendizagem que fugisse da tradicional “educação bancária”, tão criticada por Freire.
Mesmo módica, foi também a partir da década de 1970 que a utilização de documentos históricos na sala de aula apresentou-se como algo perceptível, em especial por obras organizadas pela professora Therezinha de Castro e do próprio MEC, através de professores do CAP da UFRJ, publicando coletâneas de documentos históricos para uso em sala de aula (KNAUSS, 2012, p. 34). Todavia o uso do jornal como fonte nem sempre foi uma realidade, e seu uso, em muitos casos, dera-se de maneira inapropriada, muito pela abordagem literal das notícias em sala de aula. Ao se considerar todo o cuidado necessário para o tratamento analítico deste tipo de fonte, a fim de evitar-se a perpetuação de discursos estereotipados, o uso literal do texto jornalístico, sem a devida problematização por parte do professor, pode enfatizar preconceitos, ao invés de contribuir para o aprimoramento do conhecimento histórico.
Hoje – principalmente devido o belo trabalho desenvolvido pela Fundação Biblioteca Nacional, instituição que digitalizou e disponibilizou na internet grande parte de seu acervo documental jornalístico, como também esforço de outras instituições, como por exemplo o trabalho de digitalização e publicação de jornais de época desenvolvido pelo Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED) / IDCH, Instituto de documentação e Investigação em Ciências Humanas da Universidade do Estado de Santa Catarina e a Biblioteca Pública de Santa Catarina e o projeto de pesquisa desenvolvido pela professora Marcia Janete Espig, finalizado em 2013, junto a Universidade Federal de Pelotas, no qual se fez a digitalização e disponibilização em CD de todas a matérias publicadas pelo jornal A Federação sobre a Guerra do Contestado –,  o acesso a uma diversificada hemeroteca digital tornou-se algo acessível aos professores de história nos diversos níveis do ensino. Cabendo a estes profissionais, apenas a devida escolha de um tema específico e a realização de uma busca on-line no material documental disponível, via qualquer computador com acesso à web. Obtendo assim, em instantes, um bom conjunto de documentos para utilização em sala ou como material de pesquisa. No que tange a história local e/ou regional, as hemerotecas digitais demonstram serem profícuas para esse expediente.
Segundo Tonon e Lima (2016, p. 193), “trabalhar com história local requer por parte do professor certa delimitação das fontes a serem investigadas ou mesmo da forma como elas serão analisadas”.  No caso específico do planejamento de aulas de história que tenham como tema o Movimento ou Guerra Sertaneja do Contestado (1912-1916), estes documentos digitalizados podem constituir-se em valiosas ferramentas para o desenvolvimento cognitivo nos mais diversos aspectos, aprimorando competências como a compressão da produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos e atores sociais, tal como o entendimento da gênese e da transformação das diferentes organizações territoriais e os múltiplos fatores que neles intervêm como produto das relações de poder (BRASIL, 2006).
Matérias jornalísticas sobre o Contestado foram publicadas em grande escala por jornais de todo o país desde do ano de 1900 até 1917, destaque para gazetas dos estados do Paraná e Santa Catarina. Neste expediente, os jornais O Dia, República, Gazeta de Joinville, A Republica e Diário da Tarde, entre outros, produziram interessantes matérias sobre o assunto, seja da controversa questão de limites como do próprio desenrolar do conflito a partir de 1912. Durante a abordagem jornalística deste contexto, menções de personalidades conhecidas por alunos da atual região geopolítica do Contestado – conhecimento obtido pela corriqueira homenagem prestada as estas pessoas da elite regional, geralmente coronéis, os quais tiveram seus nomes atribuídos à monumentos públicos, tal como ruas, praças, bibliotecas, escolas e ginásios –, aparecem nestes jornais, possibilitando ao professor trabalhar com a construção mental destes símbolos públicos como algo vivo na memória coletiva, apontando suas origens e possibilitando, por parte do aluno, o desenvolver da compreensão de si próprio enquanto sujeito ativo do processo histórico, associando manifestações políticas, econômicas, sociais, culturais e religiosas do presente ao respectivo contexto histórico de que o educando faz parte.
Nada obstante, é sugestível que tal abordagem seja efetivada de modo a não legitimar ainda mais o domínio elitista sob ideário escolar. Pois, a “linguagem, a grafia, a organização editorial e as construções discursivas dos jornais antigos são obstáculos a serem enfrentados pelo professor, mas não motivo para a desistência da utilização de tais fontes documentais (ALVES, 2012, p.3). Mais importante que o trabalho acerca de personalidades que tiveram seus nomes destinados a denominação de monumentos, é desejável que se discuta o cotidiano, a vida e o contexto de toda sociedade da época, temas possíveis de serem abordados por meio dos jornais (CAPELATO, 1988, p. 34). Uma boa forma para isso, seria a contraposição dos discursos presentes nos periódicos com um bom texto historiográfico do tema, o qual possa estabelecer um diálogo que evidencie a diferentes intenções políticas presentes no discurso jornalístico, facilitando para o aluno o entendimento de que aqueles documentos de época estudados não são neutros, da mesma forma que a mídia jornalística de hoje também não é, desenvolvendo assim o senso crítico e a capacidade reflexiva quanto aos diferentes meios de alienação impostos, em diferentes espaços temporais, pela indústria da mídia.
Outra perspectiva de uso do jornal para o ensino da história da Guerra Sertaneja Contestado, é a demonstração de como os diferentes interesses estaduais – Paraná e Santa Catarina – aparecem materializados nas matérias anteriores a Batalha do Irani de 1912, marco inicial do conflito. As mídias jornalísticas dos respectivos estados, entre 1900 e 1908, estabeleceram verdadeiras batalhas discursivas para expor ao público leitor, os ideais de cada governo sobre a Questão de Limites. Por inúmeras vezes, intelectuais publicaram textos elucubrados para legitimar o direito de posse do território para cada lado que representavam na disputa judicial. Fazer uso da leitura desses textos, de maneira comparativa, permitirá ao professor expor como as construções ideológicas sobre determinados objetos históricos são efetivadas através dos documentos, possibilitando, desta forma, que os educandos compreendam a complexidade do trabalho do historiador e motivem-se para deterem o domínio das técnicas de pesquisa histórica, tornando as aulas muito mais dinâmicas e participativas.
Trabalhar com o ensino de história nessa perspectiva, é de fato entender o processo de aprendizagem como dialogia entre ensino e pesquisa. Muitas das vezes os questionamentos dos alunos não poderão ser respondidos pelo professor de imediato, exigindo deste, assim como do aluno, a execução de pesquisas que solucionem, se possível, os problemas levantados (KNAUSS, 2012, p. 44). No que tange o conhecimento docente sobre o Contestado, mesmo na região em que o conflito foi placo, este demonstra ser deficitário (TONON; LIMA, 2016, p. 200), exigindo do educador uma postura muito mais aberta ao desenvolvimento da pesquisa, a qual, é, quem sabe, o caminho propício ao êxito e a consolidação da educação histórica, enquanto disciplina capaz de dar condições para formação de cidadãos conscientes de seu papel político na sociedade brasileira.

Referências
ALVES, Francisco das Neves. O ensino da história por meio dos jornais antigos: as imagens acerca dos atores político-partidários à época imperial. Historiae, v. 3, n. 1, p. 19-36, 2012.
BRASIL, Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+). Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: MEC, 2006.
BURKE, Peter. O que é história cultural?Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CAPELATO, Maria Helena. Imprensa e história do Brasil. São Paulo: Contexto, 1988.
KNAUSS, Paulo. Sobre a norma e o óbvio: a sala de aula como lugar de pesquisa. In: NIKITIUK, Sônia (org). Repensando o ensino de história. 8.ed. São Paulo: Cortez, 2012, p. 29-49.
LUCA, Tânia Regina. História dos, nos e por meio de periódicos. In: PINKSY, Carla Bassanesi. Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. 
TONON, Eloy; LIMA, Soeli Regina. Guerra do Contestado e ensino de História: sobre os ataques de sertanejos no município de Canoinhas (1914-1916). Revista História Hoje, v. 5, n. 10, p. 180-202, 2016.

10 comentários:

  1. Bela matéria. Fica aqui uma dúvida: Existia uma imparcialidade dos jornais da época com os envolvidos na Guerra do Contestado? Já que de um lado eram pessoas brasileiras contra os interesses de empresas estrangeiras.

    Lisandro Felipe Orquen da Cruz

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    1. Olá Lisandro, obrigado por sua pergunta.

      Imparcialidade, a meu ver, é algo quase que impossível quando falamos de qualquer materialidade discursiva. Mesmo uma imagem não é neutra, pois expõe um enunciado que deriva de uma determinada intencionalidade, que busca por sua vez legitimar ou negar uma subjetividade que o próprio texto/imagem objetiva. Enfim, especificamente sobre os jornais que noticiaram o movimento do Contestado, estes, em sua maioria, representavam os interesses políticos republicanos, os quais tinham como projeto de modernização nacional alianças às empresas transnacionais. A população sertaneja era, tanto para governo como para seus representantes midiáticos – os jornais – um entrave ao desenvolvimento, um atraso a ser resolvido com a inserção do elemento europeu – o imigrante – e do capital estrangeiro.

      Eloi Giovane Muchalovski

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  2. Bom dia!
    A partir de contribuições como esta, percebemos, que aos poucos o Ensino de História pode estar sendo enriquecido na práxis da sala de aula. Seria uma proposta de construção conjunta de conhecimento, capaz de produzir consciência e sentido histórico. Gostaria de saber como você pensa a contextualização da fonte (jornal) neste caso? Uma vez que mencionaste o uso de diferentes jornais?

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    1. Olá Fabiana.

      As recentes propostas de ensino, já aplicas em diversos instituições do ensino básico (como o SESI, por exemplo) já exigem do professor um esforço permanente de contextualização dos conteúdos com o cotidiano do aluno. Por vezes, essa concepção do “contextualizar”, apresenta-se como uma dificuldade para o docente, muito pela própria ideia tradicional de escola, ainda muito atrelada a já mencionada “educação bancária” combatida por Paulo Freire. Pensar o jornal como documento para o ensino de história, exige do professor um domínio além da tradicional transmissão do conhecimento, ou seja, pensar a sala de aula como um espaço onde interlocutores constroem sentidos, nas palavras da professora Maria Auxiliadora Schmidt. Nesse sentido, uma profícua proposta seria estabelecer comparativos entre os diferentes discursos dos diferentes jornais sobre determinado assunto e, ainda, complementar a atividade com a produção simulada de uma matéria jornalística, onde os próprios alunos fossem autores, emissores dos discursos, possibilitando posteriormente o confronto destes discursos entres os grupos previamente divididos entre a turma. Desta maneira, seria possível demonstrar como os textos são ausentes de neutralidade, e como o sujeito leitor é agente integrante do discurso, desenvolvendo a consciência de que a história é uma construção humana, e não algo dado, pronto, estático, não interativo.

      Obrigado por seu questionamento
      Abraço.
      Eloi Giovane Muchalovski

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  3. Olá Eloi, tudo bem?
    Eu gosto muito de usar jornais como fonte de pesquisa e subsídio em sala de aula. É uma fonte muito rica e poderosa. Eu tenho uma curiosidade: você realizou pesquisa na Biblioteca Nacional ou outra instituição com grande base de dados eletrônicos de jornais? E mais uma pergunta: você acha que o uso dessa fonte de pesquisa e ensino se presta a qualquer nível educacional?
    Obrigada de antemão!

    Beatriz da Guia

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    1. Olá Beatriz.

      No momento desenvolvo pesquisa que utiliza como fonte principal os jornais de época. Assim sendo, pesquisei sim na Biblioteca Nacional, tanto pessoalmente como através da hemeroteca digital. Também obtive documentos nos arquivos da Biblioteca Pública do Paraná e de Santa Catarina. Quanto seu questionamento sobre o nível educacional para utilização do jornal, acredito que depende muito do método a ser utilizado pelo professor e o tipo de matéria a ser explorada. Em níveis inicias do ensino fundamental, uma possibilidade de uso do jornal seria explorar os anúncios comercias, com textos mais curtos e ilustrativos, propiciando aprofundamentos no que concerne o conceito de propaganda. Já no caso específico do Contestado, vejo o uso do jornal mais indicada para alunos com maior desenvolvimento cognitivo, pois exigem uma maior capacidade interpretativa textual, sendo interessante, inclusive, a elaboração de propostas multidisciplinares, envolvendo as disciplinas de história e de língua portuguesa, por exemplo.

      Obrigado por sua contribuição.
      Abraço.

      Eloi Giovane Muchalovski

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  4. Olá Tarsis.

    A pesquisa que desenvolvo se concentra em conflitos relacionados com Questão de Limites entre Paraná e Santa Catarina e casos de violência ocorridos entre 1900 e 1908 nos vales dos rios Timbó e Paciência, especificamente focando os discursos dos jornais do sobre estes eventos. Por isso, minha principal fonte são matérias jornalísticas, as quais configuram a espinha dorsal do que tenho como problemática. Dentro desse contexto, para este simpósio, refleti sobre alguns aspectos que acredito serem relevantes para integração pesquisa e ensino, porém, não pesquiso o ensino propriamente, mas sim a produção de discursos nas matérias jornalísticas. Sendo assim, minha maior dificuldade foi definir teoricamente o conceito de discurso de forma que me possibilitasse perceber mais claramente as relações de forças com entre os diferentes jornais, pois, na maioria dos casos, quando se pensa em discurso logo se pensa em Foucault. Contudo, Foucault não é o único a refletir sobre tal conceituação, outros teóricos como Michel Pêcheux e Pierre Bourdieu também desenvolveram interessantes reflexões sobre o tema, muitas das vezes conflitantes entre cada autor.

    Obrigado pela sua pergunta.
    Abraço.

    Eloi Giovane Muchalovski

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  5. Boa Noite

    O uso do jornal como fonte em sala de aula se faz necessário para os alunos poderem compreender os acontecimentos que ocorreram no passado com o olhar de determinado grupo social. Contudo ao se deparar com a precarização das escolas e do ensino como todo o uso do jornal em sala não passa a ser a maior dificuldade?

    Atenciosamente,
    João Augusto Sanches Borgato

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    1. Olá João Augusto.

      Com certeza a precarização das escolas são uma dificuldade que todo professor depara-se na prática de seu ofício. Todavia, acredito que a questão do uso do jornal de época seja uma das propostas possíveis, uma vez que, conforme mencionei no texto, existem plataformas on-line como a hemeroteca digital da Biblioteca Nacional, que são ótimas fontes para a pesquisa em jornais que pode tanto ser consultado diretamente no computador pelos alunos – caso a escola disponha dessa ferramenta –, ou mesmo o professor pode imprimir alguns desses jornais para a devida utilização. Obviamente, que mesmo a impressão, na realidade de algumas escolas, pode ser um empecilho, mas nesse aspecto, a utilização de muitas outras atividades também seria inviável, não somente o uso do jornal. Portanto, creio que, dentro do contexto escolar brasileiro, tal atividade pode sim ser utilizada, dependendo apenas de um bom planejamento.

      Obrigado por sua contribuição.
      Abraço

      Eloi Giovane Muchalovski

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