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Elizete Gomes

TEMPORALIDADES E ENSINO DE HISTÓRIA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONCEITO TEMPO A PARTIR DE LIVROS DIDÁTICOS PARA O ENSINO MÉDIO (PNLD 2012)
Elizete Gomes Coelho dos Santos
Mestranda do PROFHISTÓRIA/UFRJ

O debate contemporâneo acerca do projeto “Escola Sem Partido”, da “Base Nacional Comum Curricular” e de reformas no ensino médio corroboram para ressaltar que a discussão em torno do que e como ensinar em História precisa levar em conta a questão das temporalidades (ANHORN, 2012). Em minha pesquisa de pós-graduação lato sensu em Ensino de História (CESPEB/UFRJ), busquei identificar em narrativas de livros didáticos para o ensino médio inseridos no PNLD 2012, de que modo o conceito tempo é significado.
A categoria tempo relaciona-se a outros conceitos como sucessão, duração, simultaneidade e contribui, por exemplo, para a compreensão da memória coletiva e histórica (MIRANDA, 2005, p. 202). Flávia Eloisa Caimi (2015, p. 30) afirma que o objetivo do ensino de História na educação básica é fornecer aos alunos condições para que possam entender as particularidades do contexto em que estão inseridos e para tal, é importante que aprendam a pensar historicamente: compreender os processos de mudança ao longo do tempo e sua influência sobre o momento presente.
Políticas de currículo, como as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2008), indicam a relevância do debate em torno das questões temporais para a formação de indivíduos críticos, o que não garante que esta discussão esteja presente na sala de aula. De acordo com José Gimeno Sacristán, os esforços necessários para compreender currículo, além de considerar sua historicidade e os fatores não só pedagógicos que o influenciam, requer investigá-lo na prática pois refletiria pressupostos e valores muito distintos, à margem das intenções: o currículo “adquire significado definitivo para os alunos e para os professores nas atividades que uns e outros realizam e será na realidade aquilo que essa depuração permita que seja” (SACRISTÁN, 2000, p. 201).
Em certos casos, único instrumento disponível de apoio pedagógico para o professor, o livro didático, “lugar de produção, distribuição e consumo de saberes/enunciados híbridos” (GABRIEL, Carmen, 2009, p. 249), é elaborado por complexos processos de didatização que não resultam em um produto ideal, impossível de ser alcançado por conta, por exemplo, de diferentes demandas que precisa atender: é primordial, portanto, formar professores críticos, para que saibam lidar com as diferentes restrições deste livro.
O PNLD, política curricular que orienta a produção e distribuição de livros didáticos no Brasil, incitou debates, críticas e pesquisas que evidenciam não só a relevância econômica para um amplo setor relacionado à produção de livros, que movimenta capitais interno e externo, bem como a função que a literatura escolar exerce na vida cultural e social (GASPARELLO, 2013, p. 22).
Nas narrativas do texto-base da unidade de abertura de “História Global: Brasil e Geral” (2010) e “História: Das Cavernas ao Terceiro Milênio” (2010), obras cujos autores e editoras de publicação possuem trajetória de sucesso em programas governamentais de livro didático, o conceito tempo não é caracterizado como uma construção cultural, o aspecto cronológico recebe destaque, há disparidades entre as orientações sugeridas aos professores e o texto-base do livro do aluno e, a divisão tradicional da História, eixo estruturador destas coleções didáticas, é insuficientemente problematizada, reforçando as marcas da tradição existentes: História linear, eurocêntrica e progressiva.
Nas unidades inaugurais das obras de Cotrim, Braick e Mota, a discussão da questão temporal se apresenta aquém de prerrogativas presentes em documentos curriculares oficiais e também, do debate no interior do campo de pesquisa Ensino de História. Reformas educacionais nem sempre se traduzem em mudanças no cotidiano escolar; apesar de esforços terem sido feitos para superar a linha evolutiva e cronológica na História aprendida/ensinada na escola, sua permanência é preocupantemente evidenciada (ABUD, 2007, p. 113).
Os sinais de alternativa identificados nas narrativas selecionadas para estudo se configuram muito mais como indicações do que exemplificações, seriam traços que poderiam colaborar para a superação da razão indolente no ensino de História, representada por resquícios do regime moderno de historicidade, como aponta Cinthia Monteiro de Araújo (2012) ao interpretar Boaventura de Sousa Santos (2002, 2007).
A sociologia das ausências e a sociologia das emergências fazem parte do caminho apresentado por Santos para implantar a ecologia das temporalidades em substituição da monocultura do tempo linear, uma das características da razão indolente, que constrói estereótipos que são transformados em verdades e estas últimas, em ações políticas de exclusão pois os parâmetros formulados para parte da Europa são idealizados como padrões para todos.
Acredito que considerar a existência de multiplicidade de tempos ao elaborar as aulas auxilia o professor na atribuição de diferentes sentidos ao que será lecionado pois contribui para a pluralidade, corroborando para a educação em direitos humanos, essencial não só ao que diz respeito aos temas abordados em sala de aula mas também, para a formação do aluno como sujeito de direitos (MONDAINI, 2010, p. 57).
Para que a problematização do conceito tempo esteja cada vez mais presente nas aulas de História, mediante sua importância, defendo que diálogos entre a Academia e os profissionais de educação básica necessitam ser fortalecidos, o que intensificaria a circulação de diferentes saberes: a escola precisa ser concebida como espaço de pesquisa e produção de conhecimento e os professores que nela atuam, devem ser convidados a participar da elaboração de propostas curriculares e ter condições de frequentar as devidas reuniões para tal.
Na jornada “O lugar da História no ensino escolar” (ANPUH, 13/05/2015, São Paulo), Circe Bittencourt, ao defender a manutenção do componente curricular História na educação básica, argumentou que o principal objetivo desta disciplina tem sido a formação política; destacou em sua fala que esta disciplina escolar proporcionaria aos alunos, muito provavelmente, a única oportunidade de suas vidas em que teriam contato com outras perspectivas temporais sem ser o tempo em que eles vivem, presentista.
Conceito enigma, o que mais permite apreender o tempo são as palavras utilizadas para referir-se a ele. Na sala de aula, negligenciá-lo implica na limitação do aprendizado/ensinamento histórico, que requer não apenas as noções de passado, presente e futuro, bem como a apreciação das ideias de sincronia, diacronia, ritmos, rupturas e continuidades. É, indispensável, à vista disso, refletir a respeito da permanência de uma concepção linear do tempo.

Referências Bibliográficas
ABUD, Katia Maria. “A História nossa de cada dia: saber escolar e saber acadêmico na sala de aula”. In: MONTEIRO, Ana Maria. GASPARELLO, Arlette Medeiros. MAGALHÃES, Marcelo de Souza (orgs.). Ensino de História: sujeitos, saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X/Faperj, 2007.
ANHORN, Carmen Teresa Gabriel. “Teoria da História, Didática da História e narrativa: diálogos com Paul Ricoeur”. In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 32, nº 64, p. 187-210 – 2012
ARAUJO, Cinthia Monteiro de. 2012. Por outras histórias possíveis: em busca de diálogos interculturais em livros didáticos de História. Rio de Janeiro: PUC-Rio (Tese de Doutorado).
BITTENCOURT, Circe. O lugar da História no ensino escolar. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XB628GqcWTY. Acesso em: 07 dez. 2015. Publicado em: 23 jun. 2015 (Canal: ANPUH Brasil).
BRAICK, Patrícia Ramos. MOTA, Myriam Becho. História: Das Cavernas ao Terceiro Milênio. Volume I – Das origens da humanidade à Reforma Religiosa na Europa. São Paulo: Moderna, 2010.
CAIMI, Flávia Eloisa. “Investigando os caminhos recentes da história escolar: tendências e perspectivas de ensino e pesquisa”. In: ROCHA, Helenice. MAGALHÃES, Marcelo. GONTIJO, Rebeca. (org.). O ensino de história em questão: Cultura histórica, usos do passado. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015.
COTRIM, Gilberto. História Global: Brasil e Geral. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2010.
GABRIEL, Carmen Teresa. “Exercícios com documentos” nos livros didáticos de história: negociando sentidos da história ensinada na educação básica”. In: ROCHA, Helenice Aparecida Bastos. REZNIK, Luís. MAGALHÃES, Marcelo de Souza. (orgs.). A História na escola: autores, livros e leituras. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2009. p. 249.
GASPARELLO, Arlette Medeiros. “Livro didático e história do ensino de história: caminhos de pesquisa”. In: GALZERANI, Maria Carolina Bovério. BUENO, João Batista Gonçalves JÚNIOR, Arnaldo Pinto (orgs.). Paisagens da Pesquisa Contemporânea sobre o Livro Didático de História. Jundiaí: Paco Editorial; Campinas: Centro de Memória/Unicamp, 2013.
MIRANDA, Sonia Regina. “Reflexões sobre a compreensão (e incompreensão) do tempo na escola”. In: ROSSI, Vera Lúcia Sabongi de. ZAMBONI, Ernesta (orgs.). Quanto tempo o tempo tem! Educação, Filosofia, Psicologia, Cinema, Astronomia, Psicanálise, História… Campinas: Editora Alinea, 2005. 2 ed. p. 202.
MONDAINI, Marcos. “Direitos Humanos”. In: PINSKY, Carla Bessanezi (org.). Novos temas nas aulas de história. São Paulo: Contexto, 2010.
Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Volume 3 – Ciências Humanas e suas Tecnologias. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2008.
SACRISTÁN, José Gimeno. O Currículo: uma reflexão sobre a prática. Porto Alegre: Artmed, 2000. 3 ed.
SANTOS, Boaventura de Sousa. “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências” In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, Outubro 2002: 237-280.
__________________. “Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de saberes”. In: Revista Crítica de Ciências Sociais, 78, Outubro 2007. p. 71-94.

10 comentários:

  1. Prezada colega, gostaria de perguntar se conhece as obras de François Hartog e seu conceito "regimes de historicidade"? Creio que seria uma referência interessante para incluir nas discussões de seu trabalho.
    Eduardo Roberto Jordão Knack

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    1. Olá Eduardo, obrigada pela indicação. Utilizei sim estas categorias ao longo da elaboração da monografia de especialização. Um abraço.

      Elizete Gomes Coelho dos Santos

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  2. Leonildo José Figueira3 de abril de 2017 às 09:10

    Olá Elizete Gomes, primeiramente gostaria de parabenizá-la pelo trabalho. Enquanto professor de História na Educação básica,a grande questão que nos surge é: "Como fazer para que os educandos estabeleçam conexões com os tempos históricos e tenham em mente a clara distinção entre os tempos e espaços estudados, compreendendo os limites e possibilidades de cada contexto/evento?". Claro que trata-se de uma questão que permite-nos um longo/rico debate, mas penso que seu texto é propício para produzir alguns apontamentos.

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    1. Agradeço os seus apontamentos. Um abraço.

      Elizete Gomes Coelho dos Santos

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  3. Ana dos Anjos Santos Costa4 de abril de 2017 às 16:48

    Ótimo texto Elizete. Gostaria que comentasse um pouco mais sobre a importância da disciplina de História para o ensino das temporalidades relacionando ao nosso período atual com a chamada Reforma do Ensino Médio, que retira a obrigatoriedade dessa matéria.

    Ana dos Anjos Santos Costa

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    1. Olá Ana! Sua indicação é bastante pertinente uma vez que a não obrigatoriedade da História enquanto disciplina escolar no ensino médio implica na não discussão das múltiplas temporalidades; portanto, na pluralidade de ser e estar no mundo.

      Elizete Gomes Coelho dos Santos

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  4. Olá, parabéns pelo texto.

    Seria uma alternativa viável utiliza-se de outras fontes e documentos históricos para criar uma intimidade e consequentemente uma representação maior do aluno acerca da temporalidade na história tendo em vista que o livro didático tem suas falhas?

    Abraço

    Rafael Marcelino Tayar

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    1. Olá Rafael! Não há livro didático perfeito, até porque esta perspectiva parte de uma análise extremamente subjetiva. Creio que o próprio livro pode ser utilizado como fonte histórica, podendo ser, portanto, problematizado etc. Levar outras fontes para a sala de aula é válido sim sendo que é preciso que sejam usadas com rigor historiográfico.
      Elizete Gomes Coelho dos Santos

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  5. Olá, Elizete. Gostaria que você discutisse um pouco acerca da ruptura ou não nas aulas de história, na educação básica, daquela velha ideia maniqueísta de que a história serve para "entender o presente através do passado e traçar as linhas gerais do futuro". Você acredita que os professores de história já superaram essa ideia?

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    1. Olá Jeannie! Sua questão nos faz refletir acerca de algo bastante complexo pois a permanência de uma perspectiva de ensinar História de forma linear, quadripartite e progressista é fruto de diversos fatores como a própria formação inicial dos professores (graduação), que ainda se dá desta forma.

      Elizete Gomes Coelho dos Santos

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