Páginas

Elaine Rocha

BATALHAS NA TORRE DE MARFIM: O IMPACTO DA INCLUSÃO RACIAL E SOCIAL NO ENSINO DE HISTÓRIA
Elaine P. Rocha
Prof. Dra. História-USP

Em 1999, Gene Veith editor da área de cultura da revista World, escreveu que para a maioria dos americanos as universidades são torres de marfim nas acadêmicos se concentram em estudos elevados, numa postura de sublime indiferença quanto às vidas ordinárias que as rodeiam (Veith:1999). Em seu argumento, ele salienta o fato de que os achados da academia raramente afetam a cultura do povo.
Ainda que se possa encontrar elementos verídicos nesta afirmação, é preciso reconhecer que ainda que o ensino universitário no Brasil tenha suas origens na educação para a elite, concentrando sua produção intelectual e debate entre as pardes dessa “torre de marfim”, eventos e processos sociais, políticos e culturais Têm afetado não apenas o produto acadêmico mas a própria composição dessa torre.
O ensino de história no Brasil tem sido palco de dolorosas batalhas, seja para a sua manutenção enquanto disciplina, lembrando as reformas pedagógicas que instituíram a disciplina de estudos socais em substituição ao ensino de história, seja no conteúdo dos currículos acadêmicos, afetados por medidas políticas como a ditadura militar e as pressões sociais e políticas que levaram à inclusão de estudos sobre a África, ou mesmo na constituição dos quadros docentes alterados com a entrada de “estudantes trabalhadores”, com a abertura de cursos noturnos. Esta última alteração no maio acadêmico, trouxe para as universidades estudantes vindos de camadas mais pobres, muitos deles afrodescendentes.
Desta forma, consideramos que o cenário acadêmico brasileiro tem sido alterado continuamente desde o final da Primeira República e que a disciplina de história, devido ao seu intrínseco valor político, tem sido alvo de disputas no âmbito educacional (currículo) e no âmbito dos conteúdos que alteram potenciais referências historiográficas, políticas e filosóficas ao mesmo tempo em que impõem novos problemas, novos objetos e novas abordagens, parafraseando o historiador Jacques LeGoff. 
A proposta deste texto é apresentar uma reflexão sobre o impacto da chegada de novos agentes na academia, seja como estudantes seja como historiadores e professores, na direção que o estudo e o ensino de história tomou desde o último quartel do século XX.
Para entender a presença destes novos agentes, é preciso compreender elementos estruturais que possibilitaram este evento e as disputas ocorridas dentro da academia e da sociedade na definição de disciplinas, conteúdos e abordagens na história do Brasil.
A evolução do sistema educacional no Brasil acontece de forma lenta, a partir de pressões políticas e econômicas, passando a acomodar posteriormente as pressões sociais e mesmo culturais. Conforme indicado pro Afrânio Garcia e Moacir Palmeira (2001), as transformações sociais brasileiras durante o século XX sofrem ainda grande influência das oligarquias rurais, e neste sentido a desigualdade social e racial tendem a persistir apesar de alterações econômicas.
Beatriz Boclin Santos (2009) argumenta que o ensino de história do Brasil (no Brasil) tem início ainda na primeira metade do século XIX, tendo como primeiro palco o Colégio Pedro Segundo, criado em 1838 como parte da construção da nação e para atender aos filhos da elite. Desde os primeiros anos da República, verificava-se uma preocupação com a expansão do ensino público no Brasil e em especial nas grandes cidades, influência dos ideais positivistas de ordem e progresso e também uma exigência econômica e social dentro do plano modernizador vigente na época.
O panorama social do período, contudo, não permitia uma ampla participação da população jovem no ensino secundário, uma vez que a maioria da população brasileira concentrava-se em áreas rurais meados do século XX e apenas com grande dificuldade poderiam enviar seus filhos para estudar nos grandes centros. A isto adiciona-se o fato de que grande parte da população jovem brasileira estava engajada no mercado como força produtiva desde muito jovem, por volta dos dez anos de idade, o que não lhes permitia frequentar a escola por um longo período.
As mudanças neste cenário se deram a partir do governo Vargas, que utiliza a educação como ferramenta para a integração e desenvolvimento nacional, ainda ali, o ensino secundário se concentraria nas cidades e era profundamente excludente. Para as camadas mais baixas da população, na qual se incluíam os afrodescendentes e grande parte da população que chegava aos centros urbanos em busca de trabalho, a realidade ainda era a do pós-abolição, com a integração precoce dos jovens ao mercado de trabalho para suprir as necessidades da família.
Dessa forma, a história narrativa, contada sob o ponto de vista das elites se reproduzia, pois dentro de uma sociedade excludente, apenas membros da elite chegariam ao ensino superior e ao seguir a trajetória acadêmica contribuir para a produção histórica. Em sua maior parte, os livros listavam fatos e eventos históricos generalizados e muitas vezes dissociados da realidade regional e local.
Se as reformas trabalhistas de Vargas ofereceram certa segurança ao trabalhador,  levando a uma pequena ampliação na participação das classes trabalhadoras na educação secundária. A ampliação da rede escolar ocorrida no período militar, também como elemento de um novo surto modernizador, coloca o trabalhador mais próximo da escola, fosse pelo aumento de escolas públicas ou pela abertura de cursos noturnos nas escolas secundárias.
Em contrapartida, o regime militar criou a censura ideológica que proibiu livros e temas utilizados nos currículos; a ampliação do mercado de trabalho com a chegada das companhias multinacionais produziu um pequeno crescimento na renda familiar que permitiu o acesso à educação, enquanto que a abertura de faculdades privadas – ainda que criticadas pela elite preocupada com a qualidade do ensino superior – ofereceu maiores oportunidades de acesso à educação superior àqueles que não conseguiam por algum motivo ingressar nas universidades públicas, ainda muito limitadas.
O outro lado do desenvolvimento econômico foi a criação de novas demandas na área de trabalho e uma emigração da área de ciências humanas e sociais para as áreas mais técnicas, isso baixou a commpetição por vagas na educação superior em cursos dedicados à educação, como era o caso de história. Da mesma forma, a desvalorização dos salários de professores criou uma evasão profissional que abriu caminhos para novos agentes. Dessa forma a profissão do magistério na área de história nas novas escolas, muitas vezes depreciadas, aparece como uma alternativa aos estudantes oriundos de classes mais baixas, aos quais a profissão de professor, ainda que desvalorizada, trazia um valor social e um aumento na renda em relação aos outros trabalhos que estavam disponíveis a estes agentes.
Temas como a redemocratização e as lutas dos trabalhadores são particularmente próximos à realidade desses profesores, e seriam eles os agentes da mudança quando das mudanças curriculares que incluíram o ensino de história da África e da diáspora africana.
O mundo acadêmico sofre ainda maior transformação com a ampliação do sistema de educação universitária pública e a adoção das cotas, que definitivamente trouxe mais alunos das camadas mais baixas para dentro da sala de aula.
Desta forma, altera-se a relação, alteram-se os agentes nos dois lados, as pressões para que a mudança atinja a produção de livros passa a obter efeitos, as teses e dissertações passam a apresentar temas mais relacionados à realidade regional, local de classe.
No ambiente intelectual acadêmico, o professor proveniente de classes menos privilegiados levanta questões e propõe temas e hipóteses que desafiam interpretações tradicionais. Isto aconteceu nos anos 60 e 70 quando filhos de imigrantes italianos, espanhóis e alemães passaram a contribuir fortemente para os estudos da classe operária e das frentes de colonização, ampliando a visibilidade daqueles imigrantes nas cidades e na zona rural. Nos anos 80 e 90 a chegada dos afrodescendentes contribui para o questionamento das representações dos negros na história do Brasil e, com o avanço das lutas por igualdade racial e social, aliado ao crescente diálogo intercontinental e entre o Brasil e a África, passam a questionar o mito da originalidade do país em relação à sua constituição e identidade nacional.
Da mesma forma, a presença de alunnos provenientes das mesmas raízes, trazem outras indagações e vivências para a sala de aula que não podem ser ignoradas pelos professores de história e pelo sistema em geral. Obviamente não podemos esquecer o impacto da lei 10639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afrobrasileira, abrindo uma demanda para a educação nesta área (para os professores) e para a publicação de material didático.
As batalhas se intensificam, assim como os diálogos e mesmo as linguagens de acesso. Aos poucos torres de marfim se desmoronam, porém entre os escombros novas batalhas, agora pela manutencão do ensino de história.

Bibliografia:
Araujo, Gilda C.. “Estado, política educacional e direito à educação no Brasil. ‘O problema maior é o de estudar’”. Educar em Revista, Curitiba, Brasil, n. 39, p. 279-292, jan./abr. 2011 Editora UFPR.
Barreto, A. e Filgueiras,C. . (2007). Origens da Universidade Brasileira. Quim.Nova, 30(7), pp. 1780-1790.
 Dias, Tatiana. (2016). Sistema de cotas raciais: inclusão em meio à controvérsia. June 17, 2016, de Nexo Jornal Sitio web: https://www.nexojornal.com.br/explicado/2016/02/24/Sistema-de-cotas-raciais-inclusão-em-meio-à-controvérsia.
Garcia, Afranio e Palmeira, Moacir. Rastros de casas-grandes e de senzalas: transformações sociais no mundo rural brasileiro. In Sachs, Willheim e Pinheiro (org.) Brasil: um século de transformações. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 38-77.
Oliveira, Jorge, Bittar, Mariluce e Lemos, J. “Ensino superior noturno no Brasil: democratização do acesso, da permanência e da qualidade”. Revista de Educação Pública, Cuiabá, v. 19, n. 40, p. 247-268, maio/ago. 2010.. “Ensino superior noturno no Brasil: democratização do acesso, da permanência e da qualidade.
 Paixao, Marcelo e Carvano, L.. (2008). Relatorio Anual das desigualdades raciais no Brasil 2007-2008. Rio de Janeiro: Garamound.
Santos, Beatriz Boclin dos. O currículo da disciplina escolar história no Colégio Pedro II – A Década de 70 entre a tradição acadêmica e a tradição pedagógica: a História e os Estudos Sociais. Tese de doutorado, 2009. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Siss, Ahyas. Afrobrasileiros cotas e ações afirmativas: razões históricas. Quartet; PENESB, 2003.

Veith, Gene. Can we recapture the Ivory Tower?  http://www.leaderu.com/humanities/veith-ivory.html, 1999. Acesso em 18 de dezembro de 2016.

2 comentários:

  1. Obrigada pelo pertinente texto. É inegável que hoje o ensino de história vive uma tensão entre os ditames da academia (nem sempre afinados com os interesses/objetivos do ensino) e a necessidade urgente de incluir abordagens mais democráticas e inclusivas do povo brasileiro em seu conjunto (população negra e indígenas, por exemplo). No entanto, indago-me se os professores e professoras de História possuem instrumentais para aprofundarem com autonomia essa tensão (academia/sociedade civil) em suas práticas educativas. Gostaria de saber o que você pensa a respeito disto.

    ResponderExcluir
  2. Cara Jeane,
    Você tem razão, a formação dos professores de história, principalmente os provenientes das camadas mais baixas, esbarra em diversos obstáculos: a falta de tempo para dedicar-se aos estudos, por que este estudante trabalha durante todo o período; a falta de recursos para comprar livros (e mesmo para fazer as famigeradas fotocópias); a falta de recursos para o aprendizado de língua estrangeira; a falta de direção para seus estudos, são alguns desses elementos. Depois de formados, a carga horária e o conteúdo dos currículos oficiais funcionam como uma moldura que impedem a exploração de temáticas e mesmo de didáticas (como as excursões para visitas aos lugares históricos), que poderiam favorecer este ensino.
    Porém – como Paulo Freiriana (isso existe?) – eu acredito na curiosidade e na indagação como motores propulsores da educação. Quando o professor tem a sua curiosidade despertada, ele buscará maiores informações para solucionar suas dúvidas; da mesma forma, o aluno que em geral aprende de forma reflexiva (no sentido de espelho), vai buscar a si mesmo na história, não encontrando, ele vai passar a fazer questões que serão o ponto de partida para o seu crescimento e quem sabe do professor.
    Ensino história há mais de 30 anos, em muitos lugares diferentes, e na minha experiência, nada supera a emoção do aluno ao “encontrar-se” na história. Hoje em dia há tantas mídias e tantas formas de colocar as pessoas em contato umas com as outras, mas ainda nos sentimos isoladas do saber formal e do discurso oficial.
    Em geral, o aluno vindo de grupos menos privilegiados vem com a idéia de que “não sabe”, ao partirmos de coisas que este aluno sabe, até porque todos nós sabemos alguma coisa, estamos autorizando o discurso/saber daquela pessoa. Aquele momento em que o/a aluno/a solta um “ããããnnnn....” e você percebe que ele ou ela conectaram os pontos. Quando a história passa a fazer sentido, é quando encontramos uma conexão entre o “nosso” e o “deles”, neste processo nasce também a cidadania.

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.