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IR AO MUSEU: A POSSIBILIDADE DE SER ATOR E ESPECTADOR SEM ESPERAR RESPOSTAS PRONTAS – ALGUMAS CONSIDERAÇÕES PARA CONTRIBUIR COM AS REFLEXÕES SOBRE ENSINO DE HISTÓRIA
Cristina Helou Gomide
Doutora em História pela PUC/SP

Como professora, sempre que vou ao museu com meus alunos e alunas, espero que eles se lembrem do que lhes disse antes de nossa visita, que se recordem de que todo espaço é histórico e que toda cidade é um grande museu a céu aberto. Comumente, como professores e professoras de história, conduzimos nossos alunos com algumas expectativas, que depois esperamos encontrar nas suas leituras dos espaços visitados. No entanto, como não somos sujeitos estáticos e nem o museu é um espaço fossializado, interpretações diversas aparecem e nem sempre o que esperamos é o que escutamos. Nesse sentido, chamo a atenção, para pensarmos que quando estamos em um museu, podemos ser “atores e espectadores”, e assim interpretarmos o museu com os olhos e movimentos com os quais estamos lidando. Ir ao museu, me parece assim, como ir a um espetáculo. Lembro-me, por exemplo, de ainda muita jovem, ver a Mona Lisa e pensar: Por que ela é tão pequena? Ora, isso não retira a obra da condição de marco no campo da história da arte e do movimento humano, mas meu olhar naquele momento me conduziu a outros questionamentos que não os que formalmente se espera de quem vai a um museu para ver a Mona Lisa. Quando caminhei de um canto para outro e os olhos daquele quadro me seguiram, fiquei extasiada, como uma criança que brinca no tempo, pensando “como Leonardo Da Vince fez isso?” Naquele momento, eu não era a jovem professora, era “ator e espectador” assistindo ao espetáculo de interpretar aquele quadro. Se o fizesse no tempo presente, provavelmente teria outras expectativas sobre a tela, e a leria de forma mais acadêmica.
Ir ao museu pode representar a busca pelo conhecimento. Porém, entendo que não necessariamente é o conhecimento, mas a possibilidade crítica dele. Ir ao museu e dialogar com a cultura material exposta é participar de um jogo, uma expedição a um espetáculo onde somos de mão dupla: ator e espectador. Gadamer (1999) explica que o jogo não é um estado de ânimo – nem daquele que o cria nem daquele que joga, mas é o próprio modo de ser da arte. Isso significa que quando você se propõe a jogar, estabelecem-se regras, que não implica no desaparecimento da ludicidade inerente ao jogo, mas apenas na sua suspensão.
Nesse sentido, quando estou trabalhando assumo um papel. Quando vou ao cinema, assumo outro. Somos uma mesma pessoa assumindo vários papéis em vários momentos. Visitar um museu pode implicar então, em viver um “momento”, um determinado papel, naquele determinado momento. Esse é o estado que Gadamer denomina diálogo. A discussão do autor não é sobre a subjetividade do jogo, mas do “modo de ser do jogo como tal”. Assim, o autor aborda a obra de arte como uma forma de experiência que só se efetiva quando experimentada. A ludicidade fica suspensa, e o jogo aparece como movimento, vivência, diálogo. Podemos assim refletir sobre os objetos expostos em um museu, sua disposição, os jogos de luzes, sua intenção. O ato de jogar transfigura aquele que o vivencia. Portanto, o “sujeito” do jogo não é aquele que está jogando. O que joga lhe dá apenas representação. É o que podemos experimentar quando vamos a um museu e visualizamos o que está exposto – interpretamos suas imagens. Se essa interpretação não acontece, não experimentamos o jogo – ou o museu -, portanto não dialogamos nem interpretamos o espaço visitado. Assim, se antes da ida a um museu, nosso aluno espera que o museu esteja repleto de “coisas velhas”, como comumente se imagina estar carregado o espaço do museu, é o “velho” que ele irá procurar. Provavelmente verá algo produzido recentemente e ainda assim, poderá remetê-la a um passado distante. Nós, professores e professoras, encontramos desafios parecidos com frequência.
Esse jogo de interpretação das coisas possui um movimento constante. A visita a uma cidade chamada histórica (por exemplo), proporciona a vivência de um momento, a criação de um “novo” olhar para aquele espaço já constituído, mas esse “novo” não é totalmente “novo”, porque é uma recriação dentro daquele espaço já existente. A disposição das casas, a proposta turística do lugar, os lazeres, tudo se configura em um jogo de apresentações. A Cidade de Goiás, antiga capital do Estado de Goiás, considerada cidade histórica, reconhecida pela UNESCO como tal desde 2001, é um bom exemplo disso. Logo que a cidade recebeu o título de Patrimônio Histórico e Cultural Mundial, o local sofreu com um acidente terrível, quando as fortes chuvas do mês de dezembro provocaram uma enchente, destruindo monumentos e casas localizados no centro histórico da cidade. À época, trabalhava com uma pesquisa sobre patrimônio e busquei saber de alguns moradores locais sobre o que mais achavam necessário reconstruir. Para minha surpresa, ficaram desolados com a destruição da estátua do bandeirante paulista, símbolo da dominação e escravidão indígena. Por outro lado, muito se ouvia dizer da necessidade de usar a verba para revitalizar a cidade, no sentido de criar novas oportunidades de trabalho, pois a cidade, embora tivesse o título de Patrimônio Mundial, possuía poucas perspectivas econômicas no campo da indústria, ficando muitas vezes vinculada ao campo do turismo. Mas como construir algo novo em um local considerado histórico? Esse é um problema. Há uma expectativa sobre a cidade e o “novo”, mesmo que não destrua o “velho”, pode ameaçar as expectativas criadas para ela. Assim, como faria o visitante para reconhecer o potencial histórico da cidade se nela também esperasse ver o novo?
Venho trazendo essas considerações no intuito de lançar reflexões sobre como criamos expectativas em nossos alunos, e muitas vezes em nós mesmos, quando programamos trabalhos de campo, atividades de extensão, e os conduzimos a espaços de visitação com o intuito de produzir conhecimento.
Esta reflexão posta aqui, não pode se reduzir a essas poucas colocações, mas visto que devemos ser objetivos, penso que esta é apenas uma primeira questão para pensarmos nas atividades com as quais lidamos fora das salas de aula e com as possibilidades que temos quanto a sermos atores e espectadores nesse jogo que é interpretar o espaço do museu.

Bibliografia:
ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método – traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Petrópolis: Vozes, 1999.
MERLEAU-PONTY, Maurice. A Prosa do Mundo. São Paulo: Cosac&Naify, 2002.

WILLIAMS, Raymond. Marxismo y Literatura. Barcelona: ediciones península, 1980.

16 comentários:

  1. Boa tarde, parabéns pelas proposições em seu texto! A questão que apresento para debate é: como afirmar que o museu "não apresenta respostas prontas", se ele em sua constituição (expografia e ambiência) já se constituem como uma representação dada sobre aquilo que se quer mostrar? Estaria o papel da educação patrimonial como mecanismo de intervenção para a leitura crítica dos museus, que tal? Abraços, Daniel.

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  2. Oi, Cristina Helou Gomide. Gostaria de saber como construir (se é possível), no museu, uma experiência estética que ultrapassa a estereotipia consagrada que acompanha a obra.
    Aguardo resposta.

    Grato, Nelson de Jesus Teixeira Júnior.

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  3. "Ir ao museu, me parece assim, como ir a um espetáculo." Que bela afirmação!

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  4. Boa tarde, Cristina. Parabéns pelo trabalho e obrigada pelas questões trazidas para o simpósio. Refleti sobre o que vc havia escrito e pensei que talvez o novo e o velho não necessitem ser contrapostos. Por que deveríamos trabalhar ainda com essa dicotomia em sala de aula ou mesmo em nossos estudos pessoais (digo também por mim)? O patrimônio é algo vivo e talvez devêssemos explorar essa essência dele. De repente, nós professores de História poderíamos comentar mais com os alunos que o velho não pertence necessariamente ao “antigamente”, mas convive com a gente o tempo inteiro, através dos costumes, das línguas, da cultura (em seu campo abrangente), etc...e que está sempre se reinventando, ou seja, sempre colaborando com o novo, se desdobrando em algo “novo”. A própria história é um processo contínuo. Com isso, concordo Cristina, que o sujeito no museu deixa de ser passivo para se tornar um ator único e pensante. Ana Marcela França.

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    1. Oi Ana Marcela. Pois é! gosto dessa ideia que rompe com os padrões de leitura dos museus, sobretudo com os esteriotipos que os colocam no passado. E mais, que divide velho e novo, passado e presente, nos distanciando daquilo que estamos vendo, impedindo a experiência.

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  5. Oi, Cristina Helou. A que você atribui a intençâo dos moradores da cidade em reconstruir o monumento que afirma o bandeirante? Seria uma aceitação desta lógica histórica ou um intenção turistica?

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    1. Boa Noite, Miriam Bianca. Penso nisso um pouco à partir de R. Williams. A retomada do bandeirante é o uso da tradição/dominação para a construção de uma identidade local. Recolocando-o na cena histórica, monumentalizando-o, o utilizo como instrumento do presente, mas me apropriando de resquícios do passado.

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  6. Soely Maria de Meira3 de abril de 2017 às 17:38

    Boa noite Cristina Helou Gomide, venho observando as mídias relacionadas aos museus tais como vídeos, visitas virtuais, e buscando elaborar planos de aula que possam explorar esses materiais, nem sempre as escolas dispõem de recursos para fornecer o transporte até os museus da cidade, então levar os museus para a escola, quais seriam as possibilidades e limitações dessa prática?

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  7. Oi Soely Maria. Boa noite! Penso que é perfeitamente possível! Além disso, é a desterritorialização do museu como espaço de comunicação, como espaço de produção de conhecimento. Atualmente a tecnologia tem aprimorado tais linguagens e as visitas se tornam sedutoras e contribuem para interpretações muito ricas dos e sobre exposições.

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  8. Confesso que numa leitura primeira, rápida, não havia percebido a riqueza e o diferencial de tua reflexão. Preocupo-me muito com os aspectos "técnicos" da construção do conhecimento, de forma, didática, em visitas à Museus. Não havia pensado ainda na possibilidade do lúdico. Gostaria de saber se já fizestes alguma experiencia prática a partir das reflexões do teu texto? Você possui alguma obra (publicação) que possa citar como exemplo?
    Obrigado,
    Anderson Romário Pereira Corrêa

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  9. Olá Cristina Helou, Parabéns pelo trabalho!

    Eu trabalho em um Museu na minha cidade e recebemos visitas de escolas diariamente, porém fica claro que a ideia da visitação que é apresentada pelos professores aos alunos é de que o museu é um mais um espaço de lazer (brincadeira) do que de aprendizagem. Lhe pergunto como podemos minimizar com estas práticas ?

    Israel Miranda

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  10. Olá Cristina Helou,
    Parabéns pelo texto.
    Muito interessante você colocar no texto essas diferentes visões de expectador e ator. Sobre a questão de se esperar as respostas prontas, uma obra ou a organização de um espaço no museu tem muito a falar. Me incomoda quando chego ao espaço do museu e vejo monitores com aquelas respostas prontas ou que os mesmo não têm capacitação para receber as pessoas. Como expectadora, espero que a pessoa que fará a apresentação do espaço do museu possa ter uma dinâmica que agrade. Por outro lado, as coisas antigas, por si só dizem muita delas.

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  11. Parabéns! sobretudo pela abordagem da prática pedagógica da visita ao museu. Sair da sala de aula, dos muros da escola, da rotina com o livro didático e com o pó de giz é um linitivo para professores e principalmente para os alunos! Aliás os museus podem ser espaços de discussão identitária, do cotidiano,do ethos local e de reflexão sobre as lutas pelos espaços sociais.
    Marcos Lourenço de Amorim

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  12. Através da observação dos alunos, podemos trabalhar em sala de aula, questões como saúde, como a tuberculose que era tratada como caso de saúde endêmica no período do século XIX-XX; o fumo, hábito indígena, e utilizado como mercadoria trocada por pessoas, na condição de escravos; o casamento, questões de gênero, sexualidade e suas relações com as normas ditadas pela Igreja Católica.
    As relações de casamento, no Brasil durante o século XIX, representaram um sistema baseado na regulamentação da ordem social e política, de função procriadora, de relações de apadrinhamento, de atos permitidos ou proibidos, e modelo austero de espaço sexual ao tempo (dias santos, domingos, quaresma, gravidez, menstruação, etc.). (VAINFAS, 1992).

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  13. Sobre experiência em um museu com alunos e a história do Brasil observação das peças utensílios móveis etc

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  14. Parabéns pelo seu trabalho com consistência teórica

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