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Celso Ramos

O CINEMA NA HISTÓRIA E A HISTÓRIA DO CINEMA: O USO DOS FILMES “OUTUBRO” (1928) E “ADEUS, LENIN!” (2013) EM SALA DE AULA
Celso Ramos Figueiredo Filho
Doutor em História Social USP

Esta comunicação tem por objetivo apresentar os resultados de uma experiência pedagógica aplicada junto a alunos do curso de Licenciatura em História, realizada em setembro de 2014. A sala cursava o sexto e último semestre do curso, na disciplina História Contemporânea II. Na ocasião, experimentamos a utilização de obras cinematográficas como ferramentas pedagógicas.
À guisa de introdução, creio ser pertinente uma digressão que situe historicamente o cinema enquanto produção técnica e artística.
Partimos da premissa de que vivemos em uma sociedade midiática, e, consequentemente, as imagens terem um poder de mobilização e de persuasão inigualáveis. Por essa razão, o cinema (considerado como a sétima arte, e filho do próprio do próprio desenvolvimento técnico atrelado ao avanço do sistema capitalista) muito rapidamente, logo nas primeiras décadas do século XX, ganhou o status de poderosíssima indústria de entretenimento. Mas, o poder do cinema – e das artes de uma forma geral – vai muito além de um leve lazer. Ele pode ser importante difusor de ideologias e padrões de comportamento e consumo.
Por essa razão, o cinema tem sido um importante interlocutor com a história, sendo ele próprio fruto das condições sócio-históricas do momento da sua produção. Como dissemos, somente em uma sociedade que dispõem de poderosíssimos recursos tecnológicos a produção de uma arte como a cinematográfica é possível. Ao mesmo tempo, a produção de um filme, por mais modesta que seja, exige uma sofisticada divisão social do trabalho, só possível em sociedades industriais. E, por fim, ela depende também de multidões de espectadores, reunidos invariavelmente em centros urbanos. Em suma, o cinema é um produto direto da Revolução Industrial, que possibilitou, simultaneamente, os meios técnicos e administrativos para sua execução, e o público para o seu consumo.

O Cinema e a história (com hagá minúsculo) e a História (com hagá maiúsculo)
Com hagá minúsculo se refere ao cotidiano das gentes e dos indivíduos, por exemplo, nossa história pessoal de vida. Com hagá maiúsculo trata-se da Ciência da História, uma cátedra universitária, com metodologia própria e compartilhada por uma comunidade internacional de acadêmicos.
O filme, pronto e acabado para ser projetado para o espectador, permite ao historiador e a todos aqueles interessados em compreendê-lo integralmente, uma tripla abordagem: o cinema enquanto técnica, e também enquanto estética e discurso político.
1) ele é um documento histórico em si mesmo, refletindo, como dissemos, os processos sociais e estéticos da época da sua execução, estabelecendo um diálogo, às vezes mais, às vezes menos consciente com essa realidade que lhe é externa, mas que o condiciona. Noutras palavras, a produção cinematográfica tem uma história própria, que reúne tanto as transformações dos seus aspectos técnicos de produção – filmes mudos, em branco e preto, três D, etc,  - como os aspectos estéticos, a exemplo das diferentes escolas cinematográficas: o Expressionismo Alemão, de um Murnau ou Fritz Lang, o Neo-Realismo Italiano de Vitório de Cica; o Novo Cinema Alemão dos anos 70, de Fassbinder e Herzog dentre outros.
2)  o filme intervém nessa mesma realidade, ao atingir a subjetividade do espectador, podendo levá-lo a rever seus valores e seus posicionamentos. A exemplo de “Juventude Transviada”, onde o “rebelde sem causa” James Dean serviu como modelo de comportamento para milhares de jovens por todo o mundo insatisfeitos com as promessas de conforto da sociedade burguês do pós-guerra, mas vazias de experiências pessoais. Ou ainda, o clássico do soviético Sergei Eisenstein, “Encouraçado Potemkin”, que mobilizou jovens por todo o planeta em defesa dos ideais socialistas e da Revolução Russa de 1917.
3) por essas razões, o filme é uma ótima ferramenta pedagógica, pois, possibilita ao professor mobilizar seus alunos nos dois sentidos acima citados e, com isso, obter uma aprendizagem mais significativa.
Os filmes que abordam temas históricos, pela sua própria natureza temática, têm essas características acima apontadas, inerentes a toda obra cinematográfica, explicitadas. O diálogo com a história e a historiografia são, nestes casos, os móbiles da produção; esses filmes convidam aos professores e seus alunos a repensarem a história e, portanto, a si próprios.

A Experiência: A Revolução Russa de 1917 através de dois filmes
Desde meados do século XIX o ideal socialista é cultivado por amplos segmentos da população em todo o planeta. A Revolução Russa de 1917, enquanto primeira revolução socialista mundial, é um tema histórico de abrangência planetária, considerado por Eric Hobsbawm o evento mais importante do século XX. Portanto, o estudo dessa vivência humana, que extrapolou as fronteiras da União Soviética, é de fundamental importância a todos aqueles que pretendem compreender o século passado e buscar perspectivas para uma vida mais digna no futuro.
Por essas razões estamos propusemos aos alunos um pequeno debate entre os filmes “Outubro”, de Sergei Eisenstein, produzido em 1927 na URSS em comemoração aos dez anos da Revolução de 1917, com o filme “Adeus, Lênin”, produzido em 2003, e que retrata os momentos de crise e desaparecimento do regime soviético. Os filmes foram apresentados aos alunos após uma aula de contextualização histórica do processo revolucionário russo de 1917, e também da sua crise nos anos oitenta.
Sergei Eisenstein já era um internacionalmente notório diretor e produtor cinematográfico graças ao seu sucesso com o “Encouraçado Potemkin”. Neste filme, recorreu a técnicas inovadoras de filmagem e de edição, usando diferentes câmeras, postadas em ângulos diversos para filmar a mesma cena por pontos de vista diferentes e repassá-los para o seu espectador, criando assim uma incomparável carga dramática. Além disso, recorria a atores amadores, populares, que representavam a si próprios em seus filmes, aumentando assim o realismo das cenas. Além disso, era sabidamente um entusiasta da revolução. Ou seja, era o camarada ideal para dar conta da produção.
Ao final, o filme não teve o mesmo brilhantismo que os anteriores, e acabou sendo muito mais um discurso de loas à revolução do que uma grande contribuição ao cinema. Isso se deve muito mais às interferências do poder soviético sobre o cineasta, que o fizeram perder o entusiasmo com a produção – lembrando que se iniciava a terrível era do estalinismo. Cenas inteiras que retratavam Leon Trotsky, desafeto político de Stalin foram cortadas. Apesar disso, o filme se utilizou de muitas cenas de arquivo, gravadas no calor dos acontecimentos de outubro de 1917, inclusive discursos de Lenin, tendo, portanto um grande valor histórico. Mesmo assim, há cenas antológicas, como a dos relógios, onde uma série de relógios indica a hora de diversas capitais do mundo, entretanto, na hora da Revolução, os mesmos se põe a girar loucamente até se sincronizarem com o tempo histórico de Moscou, com a hora universal que se vivia, indicando que a história conflui para o socialismo.
O final da experiência histórica do socialismo não poderia ter sido mais lacônico – e, brilhantemente retratado no filme “Good bye, Lenin”, “Adeus, Lenin”.
Sinopse: Em 1989, pouco antes da queda do muro de Berlim, a Sra. Kerner passa mal, aficcionada pelo socialismo, entra em coma e fica desacordada durante os dias que marcaram o triunfo do regime capitalista. Quando ela desperta, em meados de 1990, sua cidade, Berlim Oriental, está sensivelmente modificada. Seu filho Alexander (Daniel Brühl), temendo que a excitação causada pelas drásticas mudanças possa lhe prejudicar a saúde, decide esconder-lhe os acontecimentos. O filme tem um tom de comédia leve, sobretudo quando o filho passa a ter ajuda de um produtor de TV que transmite na TV da sra. Kerne programas antigos do regime soviético para que ela não conhecesse a nova realidade. Em resumo, uma paródia das “mentiras” contadas pelo regime para “enganar” o povo ocultando assim seu insucesso. Mas, ao mesmo tempo, há cenas de desemprego e de “gangs” de jovens que, sem outro propósito e “serventia” para o novo sistema que se impunha, o capitalismo, delinquiam e drogavam-se a esmo. O filme recebeu diversos prêmios internacionais, sendo considerado uma obra indispensável para se conhecer a filmografia e a história do final do século XX.
Os filmes foram projetados na sequência cronológica dos acontecimentos, após uma aula introdutória e seguidos de uma aula para debates e impressões. O filem do Eisenstein causou mais impacto, sobretudo por se tratar de uma estética com a qual não estão familiarizados. Um misto de estranhamento e surpresa. Muitos, decididamente, não gostaram: “filme escuro”, “muito parado”, “ gente estranha”,  foram algumas das impressões registradas. No entanto, preferiram o desfecho da desta história...
O “Adeus Lênin”, produção atual, foi mais palatável para os alunos. Esteticamente, estabeleceu um vínculo maior. E, também, pela narrativa menos dramática. Contudo, lamentaram da falência da experiência do socialismo real devido, sobretudo, à falta de democracia do sistema.
Foi uma experiência riquíssima, que permitiu aos alunos de Licenciatura em História não só se apropriarem de conhecimentos específicos de forma mais aprofundada, mas também de experimentarem estratégias de aulas factíveis para os demais níveis de ensino.

Referências:
HOBSBAWN, Eric – Era dos Extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Cia. Das Letras, 1995.
“Outubro”, Sergei Eisenstein, URSS, 1928, 104’.
“Adeus, Lenin”, Wolfgang Becker, Alemanha, 2003, 121’.
     


23 comentários:

  1. Bom dia. Gostaria de saber se houve dificuldades em aplicar o projeto, no que se refere ao apoio da Instituição de Ensino onde você aplicou o projeto. Houve apoio total e irrestrito ?... O material usado, quem forneceu ?...

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    1. Apoio total. Aliás, para a instituição o importante é a satisfação do aluno. Os filmes são do meu acervo pessoal, e os equipamentos estão disponíveis mediante reserva prévia.

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    2. Certo. Obrigado pelos esclarecimentos. Wendell D. Rodrigues

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  2. Gostaria de saber também, as dificuldades enfrentadas no quesito "interação com o aluno", caso tenha havido alguma... Wendell D. Rodrigues

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    1. Bom dia,

      nenhuma dificuldade, pois trabalho com a turma há vários semestres, com diferentes disciplinas. Portanto, havia total confiança dos alunos na minha proposta.
      Abs,

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    2. Ok. Que bom, esta intereção é a que eu considero de maior importância. Obrigado pelos esclarecimentos. Wendell D. Rodrigues

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  3. Olá Celso.
    Qual a fundamentação teórico-metodológica que você utiliza para este trabalho?

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    1. Oi José,

      não me apoiei em nenhuma teoria consolidada, elaborada por algum grande pensador. Foi no achismo mesmo. Pretendia apenas despertar no aluno a curiosidade pela história do cinema e pelo reverso dessa mesma moeda, ou seja, o cinema na história.
      Abs,

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  4. Olá Prof Dr Celso, gostaria de saber quais os critérios adotados para a escolha dos filmes para o seu projeto, pois : "Qual é o potencial do filme para falar do passado de uma maneira precisa e significativa? Nós podemos avaliar isso sob os mesmos elementos usados para poesia e história: o tema ou a trama; as técnicas de narração e representação; e o status de verdade do produto final. (DAVIS, 2000, p. 4-5)

    FRANCISCO ELÁDIO PEREIRA DA SILVA
    ACADÊMICO DO CURSO DE HISTÓRIA UAB/UECE - POLO DE CAMOCIM

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    1. Oi Francisco,
      os critérios foram da relevância estética e da coincidência temática em momentos históricos distintos. E, qualquer produção humana fala de seu próprio tempo de "maneira precisa e significativa". Veja o Bloch tem a dizer sobre isso...
      Abs,
      Celso

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  5. Olá Prof Celso, gostei muito do que li, na minha graduação o professor desta mesma disciplina fez um trabalho semelhante, e eu fiquei fascinada. Ano passado foi meu primeiro ano lecionando a disciplina, me empolguei, fiz projeto, pesquisei filmes e quando fiz o diagnóstico das turmas, em sua maioria, alunos semi-alfabetizados que foram empurrados pelo sistema para série seguinte.Eu lhe pergunto: Como utilizar a abordagem cinematográfica sobre determinados acontecimentos históricos, quando a turma tem dificuldade de leitura e interpretação? Porque eles amam quando é filme, mais só assistem.
    Naiane Lima dos Santos.
    Graduada em História UFS/UAB Polo de Estância/SE..

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    1. Olá,

      você pode intercalar cenas dos filmes com leituras pequenos de trechos de livros e/ou documentos históricos que ilustrem ou façam referência ao período abordado no filme. Dessa forma os alunos poderão perceber a importância das leituras para a ampliação das informações e visão de mundo.
      Abs,

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  6. Olá Celso, gostei muito do que você escreveu. Alguns professores sabem que nem sempre o aluno é receptivo para alguns tipos de filmes, na maioria das vezes só assistem por considerarem uma pausa ou descanso entre aulas, mas não prestam tanta atenção no conteúdo. Qual foi a reação dos alunos ao decorrer da exibição dos filmes?
    Luiz Carlos Domezi Junior

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    1. Olá,
      a recepção ao filme do Eisenstein, como pode ver no meu relato, não foi muito positiva. Contudo, como sabiam que se tratava de um exercício acadêmico, apostaram na ideia. E, está é uma das funções da universidade, ampliar as linguagens.
      Abs,
      Celso

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  7. Bom dia Prof.º Dr. Celso Ramos Figueiredo Filho,

    Primeiramente gostaria de parabenizá-lo pelo excelente trabalho. Sou graduando em história e os artigos que preciso escrever sempre busco abordar a área do cinema, porque é algo que me atrai. Ultimamente, com as aulas de História Contemporânea, minha visão de pesquisa está pendendo para a História Social, estou me interessando pelos temas e pelas discussões. Meu questionamento é: há pluralidade nos campos de pesquisa aqui no Brasil? Quais outras formas é possível relacionar o cinema e o social, além da abordagem de dois filmes com uma temática semelhante em épocas diferentes utilizadas pelo senhor?

    Atenciosamente

    Vinicius Sales Barbosa

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    1. Oi Vinícius, os estudos históricos no Brasil, hoje, não devem nada aos maiores centros. Basta uma simples olhada nos portais dá internet dos programas de pós das principais universidades que você poderá comprovar. Temos grupos dedicados, desde Antiga até História do Tempo Presente. Qto às outras formas de abordagem, de uma olhada no livro do professor Marcos Napolitano, "O cinema na sala de aula".
      Abs

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  8. Boa tarde Celso, parabéns pelo seu texto.
    Gostaria de saber quais foram as estratégias utilizadas após a exibição dos filmes, nos debates e impressões.

    Desde já agradeço pela atenção.

    Rebecca Silva

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    1. Oi,
      Após a exibição de de ambos os filmes, dispus a turma em círculo para que todos que quisessem verbalização suas sensações e opiniões. Em seguida solicitei a todos que elaborassem um plano de aulas sobre algum tema de História Contemporânea que incluísse obras cinematográficas. E, para encerrar, discuto com a sala a viabilidade dos.planos.
      ABS,
      Celso

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  9. Boa noite.

    Primeiramente, parabéns pela proposta. Achei ótimas as sugestões de filmes e adianto que pretendo me apropriar da tua ideia!!

    Dito isso gostaria de saber como tu procedestes a partir da exibição dos filmes? Refiro-me a discussão posterior, se houve ou não, como os alunos reagiram a exibição dos filmes, se tu realizou alguma espécie de avaliação ou sondagem da percepção deles sobre filme de maneira mais aprofundada...basicamente gostaria que "falasse" um pouco sobre isso.

    Desde já obrigado!
    Lucimar Alberti

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    1. Bom dia,
      Fico feliz que minha atividade tenha lhe agradado e, mais ainda ao saber que ela será reproduzida. Qto ao pós-filmes, veja minha resposta ao post da Rebecca.
      ABS,
      Celso

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  10. Aline Silva de Camargo7 de abril de 2017 às 18:38

    De que forma as licenças poéticas presentes nos filmes de contexto histórico podem desvirtuar e/ou aguçar os fatos originais contidos no momento em que ocorreram?

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  11. Aline Silva de Camargo7 de abril de 2017 às 18:53

    Filmes como Ed Wood de Tim Burton e A Invenção de Hugo Cabret de Martin Scorsese podem auxiliar estudantes sobre fatos ocorridos durante a História do Cinema, bem como de outros aspectos percebidos nas cronologias presentes nas referidas obras?

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