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NOVAS PERSPECTIVAS SOBRE MARCO VELEIO PATÉRCULO E A SUA HISTÓRIA ROMANA PARA OS ESTUDOS SOBRE A HISTÓRIA ANTIGA DE ROMA
Prof. Dnt. Carlos Eduardo da Costa Campos*

Parece justo afirmar que, nos últimos trinta anos, tem prevalecido uma abordagem um pouco distinta do modelo tradicional, que imperou sobre os estudos na área da História Antiga, em boa parte do século XX. Os textos históricos são analisados e avaliados com novas perspectivas. A própria disciplina de História passou por uma reavaliação bastante complexa, e tanto filósofos como historiadores começaram a questionar o valor e alegações epistêmicas da narrativa histórica tradicional. Hoje, existe uma consciência que nenhuma História pode ser completa (desde a seleção daquilo que o historiador considera como importante e essencial para a sua apresentação), nem pode ser livre de alguns (culturalmente predeterminados) pontos de vista. O statusda História também tem sido questionado em uma direção diferente: sendo considerada a sua forma literária; ou seja, os estudiosos agora enfatizam as afinidades da História narrativa com a ficção e outras formas de prosa discursiva. Nessa perspectiva, eles voltam seus olhares para as inúmeras características que tanto o discurso ''factual'' e o ''fictício'' compartilham entre si.
Esta reavaliação da História, em geral, tem influenciado a abordagem adotada por estudiosos do Mundo Antigo, cujas investigações agora tendem a desviar o olhar das questões tradicionais que eram guiadas pela confiabilidade das fontes e tendem a se concentrar no exame dos objetos literários como produtos da arte dos sujeitos, que possuem uma estrutura própria, temas e preocupações. Esta nova geração de estudos, procura descobrir o funcionamento retórico que está subjacente ao texto, mais especificamente, a maneira que o significado e a explicação foram construídos linguisticamente. Nesse sentido, alguns historiadores tendem a enfatizar, em suas análises, a ''construção'' da narrativa, com isso eles abordam o conteúdo da obra como uma versão do passado, ao invés de procurarem uma realidade dos fatos passados, inacessíveis para os estudiosos contemporâneos.
No que tange a Antiga Roma, claramente os antigos pensavam que a elaboração de uma narrativa histórica, como a historiografia, era uma área com o seu próprio tema, matéria e método, havendo assim debates sobre a exatidão de seus antecessores e se algo aconteceu desta ou daquela forma. Tal preocupação demonstra que eles conferiam um sentido ao gênero literário e que a sua tarefa não era simplesmente a de apresentar uma plausível narrativa. Assim, a caracterização da historiografia antiga é uma questão que vai muito além da geração de rótulos sobre virtude ou vício, ligados a pessoas em particular pelo narrador. O ato de caracterizar uma personagem também pode ser uma questão de estilo, de inflexão, ou de estrutura (MARINCOLA, 2007, p.1-10).
Os historiógrafos do período Augustano, assim como os do Imperial ocupam um lugar considerável na sobrevivência de elementos literários e históricos da época. Certamente, eles recontam parte da história romana, entretanto, também são o espelho dessa Roma que descrevem nos seus relatos. Os historiógrafos de Roma são verdadeiros monumentos humanos do processo de exaltação à glória de Roma e dos seus governantes (MARTIN; GAILLARD, 1990, p.107-108). Vale mencionar que a transição do estilo de escrita histórica da República Romana Tardia para o período de Augusto não é marcado por qualquer fronteira clara, simples e imediata. Afinal, ainda havia uma geração mais velha de historiadores que prestava sua fidelidade, por nascimento e perspectivas, para a República. Essa questão explica o porquê de Salústio ser comumente considerado um autor republicano, embora sua atividade tenha coincidido com os primeiros anos de Augusto, quando Virgílio e Horácio ainda estavam no início de seus trabalhos. Essa historiografia augustana é marcada pelos ecos da Batalha do Ácio e a influência da pax augusta. Logo, os escritores vivenciavam o momento de uma nova ordem social, após o período de caos e desordem política romana.
Ao analisarmos os relatos contidos na Historiografia do Alto Império, nota-se que as conquistas desde Augusto ocorreram com menos intensidade do que no período Republicano. Nesse contexto de manutenção da ordem social do império, mais precisamente entre os séculos I - III E.C. temos produções historiográficas em menor montante do que conhecemos na República Tardia. Afinal, os papéis do Senado e dos magistrados republicanos também tinham mudado com a nova ordem do Principado Augustano, lembrando que boa parte dos escritores eram provenientes do seio aristocrático. Contudo, demarcamos que novas frentes de escritores foram formadas no contexto imperial, os quais vinham de outros segmentos sociais, tendo em vista que os líderes militares da guarda pretoriana ampliaram a sua influência junto aos imperadores, por exemplo. Assim, enquanto uma fachada republicana era estampada, surgia, por trás dela, uma burocracia imperial trazendo membros da plebe e de libertos no interior da sua gestão. Ou seja, os perfis das personagens públicas se redesenhavam em Roma. Também, percebemos a amplitude das narrativas historiográficas sobre os imperadores no desenvolvimento da literatura da época, como vimos fortemente no caso da biografia.
Para Alain M. Gowing (2007, p.411-18), é essencial efetuarmos releituras sobre as obras clássicas. O autor evidencia que, por muitas vezes, as gerações de estudiosos criam certos estigmas sobre assuntos e autores. Esse foi o caso do cidadão romano Marco Veleio Patérculo e sua obra História Romana. Esta obra foi considerada historicamente superficial, marcada por um forte desejo para agradar o imperador Tibério e, também considerada um veículo para propaganda imperial. Frente a isso o trabalho de Veleio teve pouca atenção acadêmica, se comparada aos trabalhos dos outros historiógrafos romanos. No que diz respeito a essa atitude, consideramo-la um tanto quanto inquietadora, pois diversas foram as obras com um propósito similar. Alain Gowing chama a atenção para como a breve história de Veleio (contida em dois livros que abrangem o período da fundação de Roma até 29 E.C) estabelece pontes e demarca junções para a transição da República ao Principado. Na visão do autor, o valor de Veleio encontra-se em seu lugar social como um dos principais literários que emergiram imediatamente após Augusto e, portanto, um produto do novo sistema, o Principado. Gowing frisa que a sua perspectiva é valiosa, pois fornece aquilo que denominou como um antídoto para o cinismo de Tácito, o qual tinha poucas dúvidas de que o Principado de Augusto gerou a falência da República em Roma. Nesse sentido, os leitores modernos, no entanto, por tenderem a seguir o ponto de vista taciteano, que é reconhecidamente expresso por uma narrativa poderosa e envolvente, até sendo considerado o autor “mais crível”, acabam por descreditar do otimismo de Veleio sobre o período. Ademais, para Gowing (2007, p.411-18), este desdém científico se refletiu na própria escassez de traduções e comentários sobre Veleio, preterido em prol de outros escritores que lhe eram contemporâneos. Um fato que não há como negar é que toda seleção elaborada toma como ponto a proposta de um segmento. Não seria Tácito uma voz complexa para o período por refletir os interesses senatoriais? O que temos em jogo são visões de mundo, que, ao analisarmos em conjunto, podem fornecer interessantes dados para uma pesquisa e a construção de aulas para o primeiro ano do Ensino Médio. Afinal, nos intriga desvelar: Quais as características de sua obra?
Marco Veleio Patérculo, 20/19 A.E.C. – (31 E.C.) (Marcus Velleius Paterculus) - seu praenomemconsiderado como controverso é oriundo da aristocracia municipal romana, de um grupo social que ganhou importância naquele período. Seu avô paterno, C. Veleio, tinha sido praefectus fabrumsob Pompeu, seu pai era praefectus equitum sob Augusto e um cliente de Tibério Claudio Nero, pai biológico do imperador Tibério. Na perspectiva da historiografia, Veleio foi um proeminente cliens de Tibério, assim detendo uma personalidade influente no contexto político de Roma (MORENO, 2011, p.523-27; GOWING, 2007, p.411-18).
Seus relatos em Historia Romana, em boa medida, refletem a sua própria vivência política. Veleio serviu como tribuno militar nas legiões da Trácia e Macedônia (II, 2. 101. 3). Em 4 E.C., ele assistiu Otávio Augusto adotar Tibério (II. 103. 3), assim como no período foi elevado a praefectus equitum (II. 104. 3) acompanhando Tibério em uma expedição ao Reno. Posteriormente se tornou quaestor em 6 E.C. sem ser capaz de exercer esse cargo, visto que ele tinha de ajudar Tibério durante um motim na província da Panônia (II. 111. 3). Entre 9 e 11 ele acompanhou Tibério em suas campanhas nas Germânias e testemunhou o seu triunfo em Roma, 12 E.C. (II. 121. 3). Em 15, tornou-se pretor (II. 124. 4).
Sabe-se que sua obra foi dedicada a M. Vinicius, que era filho de seu antigo comandante militar. Sua obra é caracterizada pela brevidade. Veleio utilizou-se da ideia de escrever um trabalho que viesse a cobrir pelo menos o período desde o início da guerra civil entre César e Pompeu aos dias dele próprio, o sujeito locutor. Em sua produção, vemos sua própria biografia através dos vestígios legados em sua obra.  Desse modo, reconhecemos o tema do novus homo, a devoção de um soldado para Tibério e a sua proximidade com o círculo literário dos Vinicii. Na visão de Alain Gowing e de Isabel Moreno, Veleio voltava-se para a necessidade da edificação moral do Principado de Tibério, não apenas para a figura de Tibério (MORENO, 2011, p.523-27; GOWING, 2007, p.411-18). Vale mencionar que Veleio usa os padrões e modelos republicanos passados por Tito Lívio em sua escrita. Assim, convergimos com os autores sobre a perspectiva de que havia uma busca por demonstrar, através de personalidades do passado, todo o conjunto de virtudes que o mais nobre cidadão da República tem de portar ao personificar a liderança de Roma, ou seja, o exemplum para aquele que vai ser o optimus princeps (II.126.5).
Seguindo esse viés pontuamos que a História Romanade Veleio narra sim uma gênese, porém não apenas do Principado, mas as dos principes em uma República que estava sendo restaurada. Para servir à sua "república imperial'', ele retoma do passado as qualidades que considera como essencialmente positivas para serem consubstanciadas na mais notável personalidade da época. Desse modo, mesmo que Veleio tenha sido relutante em admitir a modificação do sistema político da República para o novo Principado, seu uso dos exempla, no entanto, revelam como a paisagem política e cultural tinha sido alterada nas últimas décadas do I A.E.C. e I E.C..
A História Romana de Veleio consiste em dois livros. O primeiro está mutilado no início e exibe uma lacuna considerável nos capítulos 8/9. Ele trata o tempo a partir do final da Guerra de Tróia até 146 A.E.C. em 18 capítulos. O segundo livro é constituído de 131 capítulos e discute longamente o período de 146 A.E.C até Veleio, assim terminando com um panegírico para Tibério. Para Isabel Moreno, a obra pode ser caracterizada como um Breviário, que integra o gênero da historiografia romana. O breviário era uma composição pessoal, que detinha uma nítida intencionalidade, com uso próprio, peculiar e específico no manejo das fontes. A autora salienta que é uma obra com uma distinta e complexa originalidade na elaboração retórica do assunto a ser abordado. Além da leitura de historiógrafos anteriores como Tito Lívio e Salústio, da sua experiência pessoal, Veleio também possuía acesso às Atas do Senado e aos demais arquivos imperiais, como base documentais para sua produção, como foi exposto por Isabel Moreno (2011, p.523-27).
Em suma, a obra de Veleio Patérculo emerge como uma fonte intrigante sobre o cenário político de Roma. Seus relatos nos possibilitam compreender o processo de adoção de Otávio Augusto por Júlio César até a morte do princeps em 14 E.C., sendo fecundos para obtermos indícios que viessem a complementar os biógrafos de Augusto. Logo, tomamos Veleio Patérculo como uma base de reflexão política dos aristocratas sobre esse momento de gradual modificação política e cultural romana.

Referências Documentais:
TACITE. Annales. Tome I. Livres I – III. 1re éd. 3. Texte établi et traduit par Pierre
Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
_____.Annales.Tome II. Livres IV – VI. 1re éd. 3. Texte établi et traduit par Pierre
Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
_____. Annales.Tome III. Livres XI – XII. 1re éd. 3. Texte établi et traduit par Pierre
Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
_____. Annales.Tome IV. Livres XIII – XVI. 1re éd. 5. Texte établi et traduit par Pierre Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 2003.
_____.Histoires. Tome I. Livre I. 1ère éd. 2. Texte établi et traduit par Pierre Wuilleumier et Henri Le Bonniec, annoté par Joseph Hellegouarc’h. Paris: Les Belles Lettres, 2002.
VELLEIUS PATERCULUS. Compendium of Roman History.Translation: Frederick W. Shipley. London: William Heinemann Ltd., 1961.
VELEYO PATERCULO. História Romana. Tradução: Maria Sanchez Manzano. Madrid: Editorial Gredos, 2001.

Referências Bibliográficas:
ALBRECHT, Michael von. A History of Roman Literature. Vol. 1. London: E. J. Brill, 1997.
CABANES, P. Introdução à História da Antiguidade.Petrópolis: Ed. Vozes, 2009.
ESTEVES, Anderson Araújo Martins. Os textos literários antigos e o historiador: desafios e abordagens. Cadernos do LEPAARQ, Vol. XII, n°24, 2015, p.200-210.
GOWING, Alain. The Imperial Republic of Velleius Paterculus. In: MARINCOLA, John. A Companion to Greek and Roman Historiography. Vol.:1. Oxford – UK: Blackwell Publishing Ltd, 2007, p.411-418.
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto, 2013.
MARINCOLA, John. Introduction. In:_____. A Companion to Greek and Roman Historiography. Vol.:1. Oxford – UK: Blackwell Publishing Ltd, 2007, p.1-10.
MARTIN, R.; GAILLARD, J. Les genres littéraires à Rome.Paris: Nathan, 1990, p.107-108.
MORENO, Isabel. Veleyo Patérculo. In: CODOÑER, Carmen [ed.]. Historia de la Literatura Latina.Madrid: Ed. Cátedra. 2011, p.523-527.
PINSKY, Carla (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Editora Contexto, 2010.

Notas:
*Doutorando PPGH/UERJ; Membro do ATRIVM/UFRJ; GEMAN/UFSM; Leitorado Antiguo/UPE


2 comentários:

  1. Estimado Prof. Carlos Eduardo,
    Gostaria de saber em que medida os pressupostos de Martin & Gaillard contribuem para a sua abordagem historiográfica, uma vez que a extensão do texto não lhe permitiu discorrer de forma mais aprofundada sobre esse aspecto?
    Cordialmente,
    Prof. Luis Filipe Bantim de Assumpção

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  2. Carlos Eduardo da Costa Campos7 de abril de 2017 às 16:54

    Estimado Prof. Luis Filipe,
    os autores fundamentaram minha leitura sobre os gêneros literários e a Literatura Antiga. Desse modo, acabei atentando-me para a forma e o conteúdo de uma narrativa com maiores rigores e crítica para o desenvolvimento da pesquisa.

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