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Antonio Bezerra

A LEI 10.639/03 E O ENSINO DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO BÁSICA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES
Antonio Alves Bezerra
Dr. História Social (PUC/SP)

O texto discute e problematiza os aspectos legais que fundamenta a obrigatoriedade do ensino de história e da cultura afro-brasileira nas redes regulares de ensino da educação básica e do ensino superior.
Assim, apropriamo-nos de alguns referenciais teóricos no sentido de trazermos à luz reflexões que indiquem como se deu e/ou se dá a implementação do que prevê a legislação que aborda as questões étnico-raciais e indígenas nas instituições escolares e as práticas racistas e preconceituosas que têm se nutrido no seio da sociedade por negligenciar a questão em tela.
Dialoga-se com as orientações norteadas pelo Parecer nº 3/2003 do Conselho Nacional de Educação (CNE) que determina “a elaboração das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana”, bem como o que está previsto na Resolução nº 1/2004 e, em particular, com as questões apresentadas na Lei nº 10.639/03, que busca atender o que foi previsto pelo Parecer em questão.
Destaque-se a importância de outros documentos oficiais que antecederam a elaboração da documentação até então explicitada, com destaque para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDBEN): Lei nº 9394/1996, artigo 26 A, que explicita que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e europeia”. Assim  
O conteúdo programático a que se refere o caput 1º deste artigo incluirá o estudo de História da África, a cultura dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinente à História do Brasil (ROSEMBERG, 2003, p.142).
Face aos (PCNs) para o Ensino de História e seus desdobramentos no currículo escolar, nota-se que a história deve focar os temas correlacionados aos quatro continentes: Europa, América, Ásia e África, buscando contextualizar a cultura e as experiências de lutas do povo africano e dos afrodescendentes. Assim, tem-se a expectativa de que, a partir de então, os professores da educação básica sejam capazes de perceber a importância de trabalhar junto aos estudantes da educação básica no sentido de constituirmos um discurso de valorização da cultura dos afrodescendentes, inviabilizando qualquer prática de preconceito ou racismo.
É urgente a necessidade de se trabalhar com os estudantes temas que viabilize o ensino do Continente Africano como possibilidade de quebrarmos preconceitos eurocêntricos até então cristalizados em nossa sociedade, em que se excluiu da história nacional as contribuições dos povos africanos e indígenas na constituição de nossa formação. Segundo Oliva (2011, p.185), “o estudo do Continente Africano aparece, quase sempre, como palco das ações europeias e portuguesa, ou seja, como objeto histórico sem autonomia”.
Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira deverão ser ministrados no âmbito de todo o currículo escolar mas, em especial, “nas áreas de Educação Artística, de Literatura e de História do Brasil” aponta a (LDB, 1996). Mesmo assim, acrescenta-se que antes de discutirmos os propósitos da Lei nº 10.639/2003 e sua importância para a sociedade brasileira, é salutar assinalar a presença dos PCNs e compreendermos este documento como possibilidade de abertura para a inserção do tema “Ensino de História da África e dos africanos nos currículos escolares”, porém cientes de que tal proposta é fruto das conquistas sociais dos movimentos negros e não unicamente de uma política direta do Estado brasileiro.
Pautando-nos pelo Artigo 26 da Lei nº 9394/96, ao determinar que a abordagem dos conteúdos de história do Brasil nas escolas deve “levar em consideração as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”, entendida nos termos empregados pela Lei como as “matrizes indígenas, africanas e europeias”, os PCNs de história destacam os compromissos e as atitudes de sujeitos, de grupos e de povos na construção e na reconstrução das sociedades, propondo estudos das questões locais, regionais, nacionais e mundiais, das diferenças e semelhanças entre culturas...” (BRASIL, PCNs, 1997).
Mattos (2009, p.127) destaca os PCNs de história como um terreno fértil para se disseminar ações que inviabilizem práticas preconceituosas e racistas no seio da sociedade. Segundo esta, dada a relevância dos temas transversais nas práticas de ensino na educação brasileira, com ênfase na “pluralidade cultural”, indica esses espaços como ferramenta importante na luta de combate à discriminação racial e preconceitos étnicos.
Neto (2010, p.62) destaca que não basta ensinar o que foi a escravidão nas séries da educação básica, é preciso atribuir sentido para este episódio. O autor explicita que é preciso que o professor vá além da apresentação das condições históricas sobre o sistema de escravismo no Brasil, sendo necessário que o docente de história aproxime a temática à realidade social de seus alunos de hoje. Defende-se a ideia de que, ao desenvolver no estudante a capacidade de refletir sobre o período histórico em que houve a escravidão, deve-se proporcionar também a análise sobre a questão racial e a desigualdade social no Brasil.
Mattos (2009), indica que há necessidade urgente de se redimensionar as questões teóricas acerca do ensino da História da África. Pois, se antes existia uma tendência de olhar o negro no Brasil apenas pelo clivo da história econômica, sendo este observado como mão-de-obra para as lavouras cafeeiras e canavieiras, a proposta da autora, nesse texto, aponta para outra direção, não mais a de só se observar o negro, mas a África em sua totalidade, os africanos, a identidade negra do país dentro de um contexto histórico mais abrangente, ou seja, “o mundo atlântico”.
Tomando como referência para essa discussão a Resolução no1 de 17 de junho de 2004 do Conselho Nacional de Educação/CP/DF, artigo 2, incisos 1 e 2, quando estes abordam a obrigatoriedade do ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas redes regulares de ensino da educação básica nota-se que:
§1º A educação das relações étnico-raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira [...].
No sentido de fortalecer as práticas de ensino de história, trazendo novas abordagens para o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira em sala de aula, o Parecer do CNE de no 03/04, que norteia a legislação acima, indica com precisão as ações educativas que deverão ser desenvolvidas na perspectiva de combatermos o racismo e as discriminações raciais, não apenas nas salas de aula, mas no seio da sociedade de um modo geral.
Entende-se que o espaço da sala de aula figura como lócus de possibilidades para se alcançar as mudanças necessárias para uma educação étnico-racial satisfatória, pois nesta se observa algumas interfaces dos preconceitos, racismos e desigualdades que afetam parte da comunidade negra em todo o país, podendo, a partir da formação dos estudantes e professores sobre essa África silenciada, alcançarmos a redução de parte das mazelas sociais que minimizam  as potencialidades humanas, notadamente, ao negarmos uma história africana carregada de significados para nossa sociedade, que apresentava, em 1993, segundo Fernandes (1996, p.157, p.160), “cerca de mais de 44% da população denominada negro”.  
O Parecer do CNE/CP nº 3/2003 determina que, para conduzir suas ações, os sistemas de ensino, os estabelecimentos educacionais e os professores terão como principal referência, as bases filosóficas e pedagógicas no que concerne à consciência política e histórica acerca da diversidade cultural, destacando dentre outras questões, “à igualdade básica da pessoa humana como sujeito de direito; à compreensão de que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem cultura e história próprias... [...]”. (Parecer CNE no 3/2004).
Quanto às ações educativas de combate ao racismo e à discriminação, o Parecer salienta que é preciso relacionar, dentre outros itens “a conexão dos objetivos, estratégias de ensino e atividades com a experiência de vida dos alunos e professores, valorizando aprendizagens vinculadas às suas relações com pessoas negras, brancas, mestiças [...]”. (Parecer CNE no 3/2004, pp.504-505).
Concluindo, apesar da complexidade da temática ora apresentada, os documentos oficiais citados foram bastante lúcidos ao assinalar que se trabalhe “o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana nas salas de aula no sentido de evitarmos distorções envolvendo a articulação entre passado, presente e futuro no âmbito das experiências, construções e pensamentos” que marcam a história dos negros na formação da Nação brasileira.
Em face disso, concordo com a obrigatoriedade do ensino de História e cultura africana e do negro no Brasil, uma vez que não é possível entender a história do nosso país sem nos determos nas contribuições dos povos africanos. Mas, antes das leis, torna-se necessário compreender que os professores de todos os níveis de ensino deveriam selecionar temas que evidenciassem pontos necessários à compreensão da realidade sociocultural dos estudantes da educação básica e do entorno de sua unidade educacional, uma vez que a maioria dos estudantes que frequentam as escolas públicas brasileiras é de origem africana.

Referências
BRASIL. Lei 9.394/2006. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
 ______. Parâmetros Curriculares Nacionais: temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998.
______. Parecer CNE/CP 3/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ético-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.
______. CNE/CP - Resolução 1/2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Ético-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. (DOU. Brasília, DF, 22/06/2004, Seção 1, p.11).
 ______. Lei 10.639/2003. Altera a Lei 9394/96, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira, e dá outras providencias. (DOU. Brasília, DF, 09/01/2003).
FERNANDES, Ricardo Oriá. O negro na historiografia didática: imagens, identidades e representações. Textos de História. Brasília, UNB, v. 4, no 2, 1996, pp.154-165.
 MATTOS, Hebe M. de. O Ensino de História e a Luta Contra a Discriminação Racial no Brasil. In: ABREU, M.; SOIHET, R. (Orgs). Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. RJ, Casa da Palavra, 2003.
NETO, José Alves de F. A transversalidade e a Renovação no Ensino de História. In: KARNAL, Leandro (Org.). História na Sala de Aula.Campinas, SP, Contexto, 2010.
OLIVA, Anderson. O ensino de história da África no mundo transatlântico: a presença dos estudos africanos na legislação escolar em Portugal. In: Perspectivas do Ensino de História: ensino, cidadania e consciência histórica. Fonseca, S.; Gatti, D. (Orgs.). Uberlândia, EDUFU, 2011.

ROSEMBERG, Fúlvia. Racismo em livros didáticos brasileiros e seu combate: uma revisão da literatura. Educação e Pesquisa - Revista da FE-USP, 2003. 


6 comentários:

  1. Bruno Sergio Scarpa Monteiro Guedes5 de abril de 2017 às 16:29

    Olá Antônio!

    Realmente a lei 10.639/2003 é de relevância primordial para o processo de construção da identidade negra nas escolas e na sociedade. É preciso salientar que a história da comunidade negra não só interessa aos negros, mas também a toda sociedade brasileira. Faz-se necessário desconstruir a história hegemônica e eurocêntrica que perpetua nos livros didáticos e materiais escolares no que diz respeito a história de negros e negras.

    Atenciosamente,
    Bruno Sergio Scarpa Monteiro Guedes.

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    1. Oi Bruno, obrigado pela participação!
      Então, é interessante notar que a presença de negros e indígenas nos materiais didáticos ainda encontra-se descolados de suas práticas sociais e culturais, muitas vezes repletos de informações distorcidas e, as vezes preconceituosas, negando suas ações enquanto sujeitos históricos, como integrantes participes da construção da Nação brasileira. Embora exista todo um arcabouço de legislação, ações efetivas dos movimentos negros e indígenas em todo o país, porém, no âmbito das escolas de educação básica ainda há um silêncio sobre estas questões, não tem ocorrido a implementação de ações concretas no que se refere a repensar preconceitos, formas de conduzir determinados temas das aulas de história quando alguns temas evidenciam praticas sociais oriundas de ações das minorias. O que temos na maioria das escolas atualmente é um silencio a respeito de sua cultura, de suas trajetórias de lutas, enfim... temos muito a fazer enquanto professores de história em nossas salas de aulas da educação básica, buscando a desconstrução dessa ideia de sujeitos passivos das ações dos colonizadores europeus.
      Abraços,
      Antônio

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  2. Boa tarde, na atualidade é possível o negro, o indígena..... Se identificarem com as narrativas expostas nos livros didáticos do 6° ao 9°ano associadas o seu cotidiano? (kely Martins Cunha)

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    1. Oi Kelly,
      Obrigado pela participação!
      Então, temos uma longa história com os livros didáticos no Brasil. São inúmeras as críticas feitas a muitos textos e imagens veiculados por livros didáticos sobre comunidades negras e indígenas que incitam certo teor de preconceitos, deturpam praticas significativas dessas comunidades no sentido de manter cristalizado a ideia de que os indígenas e as comunidades afrodescendentes não foram participantes da construção da nação brasileira, mesmo com os olhares críticos dos pareceristas do PNLD e de alguns professores atentos a estas questões. Nesse sentido, a possibilidade destas populações se identificarem com o que é apresentado sobre eles nos manuais didáticos é quase impossível! Basta observar os silêncios a respeito das resistências destes povos no processo de invasão e colonização das terras brasileiras pelos europeus!
      Bom final de evento,
      Antônio

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  3. Saudações Prezado Antonio Bezerra!

    Veja bem, você menciona as assertivas de Hebe Mattos sobre a abrangência dos estudos pós culturais negros, e concorda que "se antes existia uma tendência de olhar o negro no Brasil apenas pelo clivo da história econômica, sendo este observado como mão-de-obra para as lavouras cafeeiras e canavieiras," e que hoje devemos ter uma percepção ampliada para captar as redes de relações presentes no Mundo Atlântico.

    Nesse sentido, gostaria de saber se você ver uma relação, ainda que ínfima, entre a perspectiva de mundo atlântico (que amplia a compreensão das redes de relações e sociabilidades entre Brasil e continente africano) e a perspepctiva dos estudos pós culturais (que ressignifica o clivo histórico de ver o negro pelo viés econômico e passa a vê-lo pelo viés cultural, como o verdadeiro colonizador da América portuguesa)??

    Cordialmente, Wilverson Rodrigo.

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  4. Oi, Wilverson!
    Obrigado pela participação!
    Face a limitação da temática que se propõe a refletir acerca das interfaces da Lei 10.639/03 e suas implicações nas salas de aulas de educação básica, não disponho de elementos para problematizar a sua questão. No entanto, considero-a sem dúvida, muito interessante para ampliação do debate!
    Quanto a citação de Mattos (2009), quero chamar a atenção para as possibilidades legadas pelos PCNs de História em se trabalhar a diversidade em salas de aulas, inclusive, a cultura afro-brasileira (objeto da Lei em questão). Outro ponto que a autora chama a atenção é compreendermos as interfaces das experiências dos povos negros e afrodescendentes não apenas a partir de sua entrada no Brasil para suprir as necessidades da Colônia (como mostra a maioria dos materiais didáticos), mas suas experiências no Continente Africano. Nesse Sentido, ressalto mais uma vez, não disponho de elementos para discutir com profundidade a questão colocada por você!
    Agradeço a sua participação,
    Bom termino de evento!
    Antônio

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