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Rodrigo Conçole

DISCUTINDO A NOÇÃO DE FATO HISTÓRICO A PARTIR DO ROMANCE O CRIME DE SYLVESTRE BONNARD, MEMBRO DO INSTITUTO
Rodrigo Conçole Lage
Especialista em História Militar – UNISUL

Marc Bloch e Lucien Febvre irão dar origem ao movimento historiográfico chamado Escola dos Annales, que o historiador Peter Burke (1991) classifica como sendo a revolução francesa da historiografia. Os historiadores ligados a esse movimento foi construído em cima de uma crítica a historiografia tradicional. Dentre as muitas mudanças promovidas por esses historiadores temos a ampliação da noção de fonte histórica: “A nouvelle histoire francesa fez uso de novas fontes de modo a responder às novas questões que seus praticantes colocavam para o passado” (BURKE, 1997, p. 4).
Os historiadores passaram a utilizar não só os documentos oficiais, mas tudo o que pudesse fornecer alguma informação sobre o passado (imagens, fontes orais, literatura, etc.). Adotando essa ideia, decidimos desenvolver a ideia de se discutir com o aluno a noção de “fato histórico” a partir do romance Le Crime de Sylvestre Bonnard, membre de l’Institut, do escritor francês Anatole France, prêmio Nobel de Literatura de 1921 é um modo de levá-lo a olhar de forma crítica a história que lhes é ensinada. O romance é o diário do historiador e filólogo Sylvestre, que teria sido escrito entre os dias 24 de dezembro de 1861 e 21 de agosto de 1882, cobrindo um período de quase 21 anos.  
Como os alunos veem o que é registrado nos livros de História? Aceitam passivamente o que é ensinado pele professor ou questionam o que está nos livros? Como o professor vê o conteúdo a ser ensinado? Vê nele a verdade a ser transmitida e memorizada ou apenas uma visão dos fatos, passível de ser problematizada. Ele deve se limitar a reproduzir o que está nos livros ou deve analisar criticamente seu conteúdo e assim ensiná-lo de modo a formar alunos críticos?
Para que o professor, e os próprios alunos, possam questionar o conteúdo da matéria e ter uma visão de como a História é construída pelos que a escrevem é preciso primeiro entender a natureza do fato histórico, que é o objeto de conhecimento do historiador, do professor e, consequentemente, do próprio aluno. A definição mais simples desse conceito é a de que se trata de um acontecimento do passado, que pode ser conhecido por meio dos documentos, dai o surgimento e o desenvolvimento “da crítica textual como pedra angular do positivismo historiográfico” (FUNARI; SILVA, 2008, p. 30). Com o passar do tempo, podemos ver que essa noção se ampliou e passou a envolver não só os acontecimentos, mas também as instituições (como a inquisição), as ideias (como a noção de morte), objetos (como o livro), etc.
Essa noção de fato histórico é muito útil, pois, por meio dela, o professor pode discutir com os alunos o porquê de alguns assuntos não serem tratados pela História. É um forma de levar os alunos a verem a história “como um processo social, no qual sujeitos produzem o mundo por meio da mediação cultural” (CARDOSO; VAINFAS, 2012, p. 279). E que, sendo construída por sujeitos, a exclusão desses sujeitos da História não é aleatória, mas tem um sentido. Discutir a exclusão da atuação da mulher ou dos indígenas, por exemplo, é de fundamental importância. 
No romance, Gélis discorda de Bonnard, que defende a ideia de que a História é uma ciência, o que o leva a discutir a própria noção de fato histórico. O professor poderia dar o trecho do romance para ser lido e depois discutido, antes mesmo do ensino da história propriamente dita. Isso permitiria aos alunos ver o conteúdo do livro didático não como uma mera reprodução do que aconteceu no passado, mas como algo construído pelos que o escreveram e passível de crítica. O trecho a ser trabalhado diz:
 – Antes de mais nada, que é a História? A representação escrita dos acontecimentos do passado. E que é um acontecimento? É um fato qualquer? Não, dirá o senhor, é um fato notável. Pois bem, como o historiador julgará se um fato é notável ou não é? O julgamento dele será arbitrário. Segundo o seu gôsto (sic) e o seu capricho, como imagina – enfim: julgamento de artista! Porque os fatos não se dividem pela própria natureza em fatos históricos e em fatos não históricos. Aliás, um fato é uma coisa extremamente complexa. O historiador conseguirá ver os fatos na sua complexidade? Não, não lhe é possível. Êle (sic) os representará sem a maior parte das particularidades que os constituem; por conseqüência (sic), truncados, mutilados, diferentes do que foram. Quanto à relação dos fatos entre êles (sic), o melhor é não falar. Se um fato histórico é produzido, o que é possível por um ou diversos fatores não históricos, e, como tais, desconhecidos, o meio para o historiador, desculpe perguntar-lhe, é assinalar a relação dos fatos entre êles (sic)? E em tudo o que lhe digo, Sr. Bonnard, suponho que o historiador tenha sobre os olhos provas certas; em realidade, êle (sic) só confia em tal ou tal testemunha por motivos de sentimento. (FRANCE, 1971, p. 222)
O primeiro ponto a ser discutido é como, ao longo do tempo, muitos acontecimentos não foram tratados pelos historiadores por não serem considerados dignos de atenção. A exclusão das mulheres ou dos indígenas, como foi dito anteriormente, pode ser tema de debate. O questionamento a cerca da possibilidade de se abordar um fato histórico em toda a sua complexidade é outro ponto de extrema importância. Até que ponto o que é ensinado corresponde exatamente ao que aconteceu?
Até que ponto o que o professor, ou o historiador, apresenta é um ponto de vista passível de ser interpretado com um sentido diferente, dependendo das fontes utilizadas e da forma como foi interpretado, porque não existe nenhuma prova que invalidade determinada interpretação? Esse questionamento não serve só para o aluno, mas como uma forma de reavaliar a própria prática pedagógica e o modo como o professor vê a História. Se o professor não se vê como um mero transmissor de fatos esses questionamentos não podem estar ausentes de sua prática pedagógica. Ao mesmo tempo, a questão das relações entre os diferentes fatos, dos pontos de conexão entre eles, de como fatos, que podemos chamar de não históricos, estão entrelaçados aos que os historiadores consideram históricos também pode levar a discussões interessantes.
Por fim, o último ponto a ser abordado é a questão da veracidade do que é ensinado. Uma matéria de jornal pode ser utilizada para o ensino da história? De que forma o aluno vê uma notícia de jornal. Como uma descrição fidedigna dos acontecimentos? Ou a lê de forma crítica? Até que ponto uma fonte ou um relato histórico tem todo o valor e toda a autenticidade que o professor ou o historiador lhe confere? Trabalhar com diferentes textos sobre o mesmo assunto é uma forma de o professor levar o aluno a ver que nem tudo o que ele lê é necessariamente verdade O ponto mais importante, levantado pelos questionamentos apresentados no romance, é o da necessidade das discussões teóricas para a pesquisa e o ensino da história. Do contrários, teremos uma visão muito ingênua do que ela é.
Assim, por tudo o que foi dito, podemos dizer que a utilização da literatura como fonte para discussões relativas ao ensino da história, assim como a prática do historiador, pode nos permitir lançar um novo olhar sobre as questões levantadas e sobre a própria prática pedagógica e o ofício do historiador.

Referências:
FRANCE, Anatole. O crime de Sylvestre Bonnard.Rio de Janeiro: Editôra Opera Mundi, 1971.
BURKE, Peter. A escola dos Annales 1929-1989:a revolução francesa da historiografia. 3. ed. São Paulo: UNESP, 1991.
________. Gilberto Freyre e a nova história. Tempo Social, São Paulo, v. 9, n. 2, p.1-12, 1997. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ts/article/view/86687>.
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Org.). Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
FUNARI, Pedro Paulo A.; SILVA, Glaydson José da. Teoria da História. São Paulo: Brasiliense, 2008. 

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